São Paulo, segunda-feira, 1 de maio de 1995
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Amis faz estudo esfuziante sobre a inveja

CHRISTOPHER BUCKLEY
DO ``THE NEW YORK TIMES BOOK REVIEW"

A imprensa britânica anda lamentando o último romance de Martin Amis, ``The Information", e a nossa também, até certo ponto.
A razão deste fuzuê todo é -prepare-se- que Amis despediu uma agente (a mulher do escritor Julian Barnes, seu amigo íntimo) e contratou outro, Andrew Wylie, um americano ao qual a imprensa britânica vem se referindo como ``o Chacal" ou ``o Robert Maxwell do agenciamento", que conseguiu para Amis um polpudo adiantamento sobre a edição britânica -dizem os boatos que algo da ordem de US$ 800 mil.
Para um escritor como Jeffrey Archer, por exemplo, US$ 800 mil não passam de um erro de arredondamento, mas, para um romancista literário como Martin Amis, é uma quantia respeitável. Os céticos já prevêem que a Harper Collins, que publica o livro no Reino Unido, jamais conseguirá recuperar o dinheiro.
Tenho que admitir que Amis acertou em vários pontos. Em primeiro lugar, a tempestade criada neste copo d'água específico condiz perfeitamente com o tema do livro: inveja literária. Em segundo -os americanos não terão dificuldade em entender este ponto-, se você pode conseguir US$ 800 mil por teu romance, meu amigo, vá fundo.
Desde que Martin Amis apareceu em cena nos anos 70, ele tem sido o ``enfant terrible" da cena literária. Se ele ainda consegue sustentar esse papel hoje, aos 45 anos, só nos resta parabenizá-lo. Amis é um romancista que tem um plano. Sua carreira tem uma curva e um projeto. Ele já disse praticamente isto em entrevistas.
Começou irreverente, com ``The Rachel Papers" e ``Dead Babies"; consolidou-se com ``Grana" e ``Success"; tornou-se um pouco pesado com ``Campos de Londres" e o horologialmente contestado ``Flecha do Tempo". Agora nos apresenta o romance da crise da metade da vida.
``Levou cinco anos para ser escrito", anuncia a capa com um bater de pratos, além dos tímpanos tocados por Saul Bellow, informando-nos que Martin Amis é o novo Flaubert, o novo Joyce. Quem poderá contestá-lo? Seja o que for que você sinta a respeito, a constatação é inevitável: Martin Amis é o principal representante literário de sua geração.
Seu linhagem é honrosa, mas o território que ele cobre é o lixão da psique humana -neste caso, o cenário literário londrino. O personagem principal é Richard Tull, 40 anos, revisor de livros, editor e romancista fracassado, funcionando como Salieri para o Mozart que é Gwyn Barry.
O último livro de Gwyn o tornou tão célebre que Richard, ostensivamente seu melhor amigo, está fervilhando por dentro. Richard tem uma mulher linda e dois filhos ótimos, em um dos quais costuma bater quando Gwyn figura na lista dos best sellers (provavelmente a única instância hilária de abuso de criança na literatura).
Richard é editor de uma pequena revista literária e também trabalha numa ``vanity press" (editora que publica livros cujos custos são pagos pelos próprios autores). Ele escreveu uma série de romances, cada vez mais obscuros. Fuma, usa drogas, bebe e chora ao dormir à noite. Ele também é impotente, fato que nunca ajuda muito.
Seu último romance, intitulado ``Untitled" (Sem Título), é tão impenetrável que todo mundo que tenta ler o manuscrito cai vítima de temíveis problemas neurológicos antes de chegar à página 10.
Gwyn -que, segundo um recente artigo saído na revista ``The New Yorker", sobre todo o caso Amis, não, repito, não tem como modelo Julian Barnes- é o amigo mais íntimo de Richard desde que dividiram o mesmo quarto, quando estudantes em Oxford. Ele é galês. Também é ``rico e simpatizante do Partido Trabalhista".
O artigo do ``New Yorker" deu-se ao trabalho de verificar que Amis, embora seja rico, ainda vota no Partido Trabalhista, fato que aparentemente representa o pomo de discórdia entre seus divididos colegas britânicos. Evidentemente o escândalo do banco Barings chegou bem a tempo de desviar as atenções do caso Amis.
Exceto pelo fato de lhe terem dado uma bexiga solta, os deuses trataram Gwyn com benevolência. Ele é tão bem-sucedido quanto Richard não é. Ganha rios de dinheiro com seus romances. Hollywood espera na linha dois para falar com ele; ele é um dos finalistas no concurso cujo prêmio se chama -Amis tem o toque perfeito- Retribuição pela Profundidade, uma espécie de mini-Nobel/dinheiro vitalício.
Para coroar tudo isso, é casado com Lady Demeter de Rougemont, uma loira rica e gostosa com quem, ao que tudo indica, faz sexo frequente e lascivo. Você já deve estar do lado de Richard. Vidal tinha razão, e como.
Ele começa por procurar por Londres inteira uma edição de domingo do ``Los Angeles Times" e a deposita na porta da casa de Gwyn, acompanhada de um bilhetinho dizendo: ``Aqui tem algo que te interessa. É o preço da fama! Cordialmente, John", sabendo que o vaidoso Gwyn passará horas, ou dias, vasculhando o jornal, que pesa toneladas, à procura do lugar em que é mencionado.
A seguir, passa para vinganças mais fortes, envolvendo o zoológico já familiar em Amis de proletários perigosos, membros sombriamente divertidos do submundo londrino com nomes como Scozzy, Darko, Crash, RoosterBooster e 13.
A lei das consequências não-pretendidas entra em ação sangrenta. Um dos capangas se confunde e começa a perseguir Richard em lugar de Gwyn. A brincadeira vai ficando mais perigosa, menos previsível. Ela se transforma num jogo de xadrez -uma das paixões de Martin Amis.
Será que um escritor invejoso é o suficiente para sustentar um livro inteiro? Surpreendentemente, sim. Neste livro Amis está esfuziante, ainda mais do que esteve desde ``Grana", em que colocou a nu a indústria cinematográfica. Na metade de ``The Information" passa-se por uma espécie de ``barriga", mas nunca se deixa de ler uma frase picante, uma metáfora aguçadíssima ou um insight certeiro sobre a condição humana.
E há o humor; Amis se aventura por lugares onde outros humoristas têm medo de pisar. Quem, senão ele, poderia fazer rir de alguém com uma ressaca memorável, arrebentadora de cerebelos, movida por cocaína com licor de ameixas e abricó, sentado sobre as secundinas de uma cadela Labrador?
A indignação e o ressentimento de Richard, seu ódio, suas tramóias, sua derrota e sua determinação férrea de compensar o desequilíbrio cósmico possibilitam invenções fantásticas, como quando ele datilografa outra vez o romance de Gwyn para que possa -mas é melhor eu não contar.
Martin Amis já escolheu algumas ambientações bastante sombrias para seus romances anteriores. ``Flecha do Tempo" era sobre o médico de um campo de extermínio nazista. E o interior da cabeça de um escritor impotente e fracassado não é exatamente um campo ensolarado, cheio de flores.
Refletindo sobre o suicídio de uma amante, Richard se indaga por que tantas mulheres de escritores se mataram ou enlouqueceram. E concluiu: ``porque os escritores são pesadelos. Escritores são pesadelos dos quais não se consegue acordar. Mais vivos quando estão sozinhos, eles transformam o viver numa coisa difícil de se fazer para todos que os cercam".
Esta honestidade brutal parece contradizer a modernidade esforçada de Amis. Ele é o príncipe herdeiro do ``in" literário, o Beau Brummel do ``blasé". Mas tudo isso acaba se tornando cansativo -vazio e niilista. Corre o risco de transformar os Dez Mandamentos numa lista dos Dez Mais de David Letterman.
Martin Amis está um passo à frente desta crítica. Richard reflete que ``as mulheres tinham tanto sentimento e parecem precisar de orientação do teatro. Mas os homens também eram teatrais, na medida em que precisavam sê-lo, sentindo menos... Os homens cursavam apenas uma escola de atores (o método), aquela do `cool'. Isso são os homens: atores de um `cool' exagerado".
É uma linha perfeita, brilhante e autoconhecedora. São esses momentos, além da prosa ``cool", que fazem com que seja tão interessante observar a evolução de Martin Amis -cuidado, Flaubert! Cuidado, Joyce!

``The Information", de Martin Amis. Nova York, Harmony Books. 374 págs. US$ 24. Onde encomendar: livraria Cultura (tel. 011/285-4033)

Tradução de Clara Allain

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