São Paulo, sábado, 10 de junho de 1995
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Boca-de-sino

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - O presidente da República acredita que o Brasil vai virar uma página de sua história. A ameaça me intranquiliza. Apesar de não ser (nem de longe querer ser) sociólogo, já tenho experiência suficiente para reconhecer o caráter pendular dos ciclos históricos, tanto na vida dos indivíduos como no das nações.
Virar a página porque cairá o monopólio do petróleo equivale à dondoca que, voltando de Paris ou de Nova York, descobre que precisa virar a página de seus armários e dá para as empregadas o guarda-roupa superado. Na época em que foi moda a boca-de-sino nas calças de homens e mulheres, fui a uma agência de publicidade em São Paulo para aprovar a campanha de lançamento de uma revista que editaria.
O dono da agência estava subindo pelas paredes porque um de seus assistentes aparecera com uma calça fora de moda. Deu um ataque (era sujeito a histerias), jurou que nenhum funcionário jamais entraria em sua agência a não ser com calças bocas-de-sino. Estava agitadíssimo, pediu sais, a reunião foi uma droga, não houve concentração para se discutir a campanha.
Lembro isso a propósito da página que o governo diz que está virando. O deslumbramento neoliberal pelo novo modelo de Estado não deixa de ser uma boca-de-sino. Evidente que não se deve recusar liminarmente os experimentos, mas a prudência ensina (ou devia ensinar) que o ontem e o hoje se misturam e se alternam na trajetória da sociedade. Jogar fora guarda-roupa antigo é ostentação de novo-rico. O monopólio estatal pode ser nefasto, mas continua sendo melhor do que o oligopólio de grupos especulativos. O caso da velha Light é antológico.
O presidente da República dá um passo temerário: o de presidir ao grande leilão do patrimônio nacional. Na próxima rodada do pensamento político, esse leilão será considerado a maior traição de nossa história. E não adiantará pedir para que esqueçam o que ele fez. Ficará em péssima companhia no panteão às avessas do povo brasileiro.

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