São Paulo, domingo, 18 de junho de 1995
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A fome no mundo em 2010: um relatório da FAO

RICARDO ABRAMOVAY

Produzir mais alimentos não é o bastante para acabar com a fome

Seiscentos e cinquenta milhões de famintos: esta é a perspectiva com que trabalha a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (conhecida por sua sigla em inglês, FAO) para o ano 2010, num importante relatório que acaba de ser publicado em Roma (Nikos Alexandratos - ``World Agriculture: Towards 2010", FAO e John Wiley and Sons, 1995, 488 páginas).
Apesar da brutalidade dessa cifra, ela corresponde a um progresso não só relativo, mas também em termos absolutos diante dos 800 milhões de pessoas que, hoje, podem ser consideradas gravemente desnutridas, a maior parte das quais localizadas na África Sub-sahariana -onde quase 40% da população têm um nível nutricional muito abaixo de suas necessidades básicas- e no Sul da Ásia (principalmente na Índia e no Bangladesh).
Mais do que um simples exercício de previsões, o relatório da FAO coloca três desafios-chave para o enfrentamento dos problemas de pobreza e subalimentação.
1. A FAO nunca se caracterizou por uma postura neomalthusiana no estudo dos problemas alimentares. Mais uma vez aqui, esta orientação é confirmada: não existe perspectiva de escassez alimentar em escala mundial.
É verdade que o crescimento agrícola mundial vem declinando nas últimas três décadas. Mas isso reflete antes de tudo o fato de que quase a totalidade da população das nações ricas e uma proporção cada vez maior dos que vivem nos países em desenvolvimento têm suas necessidades alimentares globalmente satisfeitas.
Além disso, o declínio no crescimento agrícola exprime a redução na própria taxa de aumento demográfico, mesmo naquelas partes do mundo em que os problemas alimentares são mais sérios. A oferta global de alimentos ``per capita" é hoje 18% superior ao que era 30 anos atrás e as possibilidades de aumento da produção são imensas, a tal ponto que os países desenvolvidos praticam política ativa de ``repouso" de parte de sua superfície agrícola útil.
Só que produzir alimentos não é o bastante para acabar com a fome. O importante -sobretudo nos países e nas regiões em que a população rural é grande e tem taxas de crescimento demográfico elevadas- é que se consiga uma integração orgânica entre o combate à fome e a produção de alimentos por parte dos pobres que vivem no campo.
É neste sentido que o documento afirma que aumentar a demanda e aumentar a produção, nessas situações, são duas faces da mesma moeda: ``para que o consumo nos países pobres eleve-se a um nível aceitável, os alimentos adicionais precisam ser produzidos no lugar certo."
2. Para isso, entretanto, é necessário que os pobres obtenham as credenciais necessárias para participar deste processo de desenvolvimento. A primeira delas é o acesso à terra. O tema da reforma agrária (tido tão frequentemente como fora de moda) continua no centro das recomendações da FAO para permitir que a participação dos pobres rurais na vida econômica de um país seja o caminho principal de sua emancipação social.
A segunda credencial, mas não menos importante, é o conhecimento, a educação. Que o crescimento econômico (e o crescimento da agricultura em particular) seja uma condição necessária para o combate à pobreza, disso hoje ninguém duvida. Mas se os pobres não dispuserem de um mínimo de meios para participar deste processo de crescimento, a desigualdade corre o risco de aumentar.
Na Índia, segundo o estudo da FAO, o crescimento atingiu positivamente os pobres. Mas é possível, diz o documento, que a má distribuição da renda impeça que os frutos desse crescimento beneficiem os pobres e o exemplo citado para este caso é o do Brasil.
É sintomático, nesse sentido, que durante a década de 1980, enquanto a subnutrição grave cai, em termos relativos, sensivelmente no Sul e no Leste da Ásia, ela mantém-se estável na América Latina.
3. Os problemas ambientais podem representar um ponto de estrangulamento nessa estratégia de combate à pobreza. É possível alcançar a compatibilidade entre segurança alimentar e sustentabilidade, entre o que exigem as gerações presentes e o que legaremos às futuras?
Em torno da resposta a esta questão vai jogar-se um dos temas-chave do comércio e mesmo da geopolítica mundial nos próximos anos. É evidente que os países ricos são os que dispõem das melhores condições para adaptar suas agriculturas às necessidades da preservação ambiental. Por um lado, pelos recursos técnicos e financeiros que detêm; é importante assinalar, nesse sentido, que os subsídios agrícolas vinculados à preservação ambiental foram aceitos como legítimos no fechamento da Rodada Uruguai do Gatt e dificilmente poderão ser contestados na Organização Mundial do Comércio.
Além disso, os países ricos não são obrigados a responder à pressão imediata de aumentar a produção para garantir sua própria segurança alimentar. O argumento ambiental será cada vez mais usado nas negociações internacionais para reforçar o poder que hoje já possuem no mercado mundial de alimentos e que, segundo os dados da FAO, só tende a se reforçar: a taxa de auto-suficiência alimentar dos 93 países em desenvolvimento vem caindo de 98% em 1961/63 para 92% nos dias de hoje, devendo baixar ainda mais para 90% em 2010.
Os países em desenvolvimento possuem menos recursos, pessoal menos formado e enorme pressão para o aumento imediato da produção, muitas vezes em áreas e com técnicas de fato pouco sustentáveis. A resposta por parte dos países em desenvolvimento a esta restrição ambiental não pode ser nem a renúncia ao direito que têm de estimular sua própria produção, nem o desprezo com a sustentabilidade na agricultura.
Terra, educação, pesquisa no sentido de estimular formas de intensificação produtiva menos dependentes de meios mecânicos e insumos químicos convencionais, e sobretudo a preocupação em fazer com que o aumento da produção se dê em condições de credenciar a maior quantidade possível de famílias para participar do mercado, estas são algumas das recomendações básicas do documento para enfrentar o desafio da construção de uma agricultura sustentável.
O mínimo que se pode dizer a respeito, aliás, é que, entre os países em desenvolvimento, o Brasil possui condições especialmente privilegiadas de levar este desafio adiante com sucesso.
Em suma, é provável que em 2010 o mundo esteja menos faminto que hoje e até que se reduza a atual pressão sobre os recursos naturais. O que não está decidido é se a satisfação das necessidades de consumo será uma das formas importantes de integrar os pobres à cidadania econômica ou um meio de reforçar sua dependência e marginalização.

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