São Paulo, domingo, 18 de junho de 1995
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Os produtivos e os insatisfeitos

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE
DO CONSELHO EDITORIAL

Ao defrontar-se com um fenômeno novo, inesperado e destituído de um modelo teórico capaz de explicá-lo, o cientista recorre sempre a um processo analítico simples que começa por analogias com outros efeitos bem conhecidos e prossegue com uma tentativa de classificação. Somente após estes procedimentos preliminares procura ele desenvolver uma teoria. Mas já estamos aqui colocando o carro diante dos bois.
Antes das analogias e da tentativa de classificação, o cientista procura descrever o novo fenômeno, retendo sua essência e desfazendo-se do que for meramente circunstancial. Pois é o que passamos a fazer.
Esta Folha publicou recentemente um levantamento sobre a ciência brasileira. Foram incluídos dados sobre número de citações e de publicações originárias de instituições nacionais e de cientistas brasileiros. Presumivelmente o motivo pelo qual a Folha publicou este estudo foi a convicção de que seus leitores, que representam parcela significativa da opinião pública nacional, se interessariam em saber onde e quem ``fazia ciência" no Brasil, inclusive os próprios cientistas.
Um levantamento como este necessariamente, de maneira explícita ou implícita, estabelece uma hierarquia entre instituições e entre indivíduos. E o fenômeno que queremos entender é a reação negativa de muitos dos acadêmicos brasileiros. Vamos às analogias.
Tomemos inicialmente o concurso de miss Brasil. Depois do resultado final, as meninas poderiam rejeitar o resultado, mas não consta que tivessem jamais contestado a divulgação do resultado. Eu sei que alguns vão argumentar que fazer ciência não é o mesmo que entrar em um concurso. Formalmente não é mesmo. Mas talvez no fundo não seja muito diferente.
Senão, vejamos. O que faz o cientista? Ou melhor, qual é a sua missão? O cientista desvenda a natureza. Ele procura descobrir o que não foi descoberto. Eu sei que isto é uma tautologia. Mas ele procura conhecer o que ninguém conhece. Se o resultado de uma experiência for algo conhecido então a experiência é inútil. A menos que sirva e tenha tido a intenção de confirmar algo ainda não assimilado no estoque universal do conhecimento, na ciência.
Seu objetivo, portanto, é estar à frente de todos os seus pares. É ganhar uma corrida. E nisto ele se compara à miss Brasil. Só pode haver uma miss Brasil, ou uma miss Universo, ou uma miss Caçapava e só pode haver um descobridor do ``efeito túnel". E quem quer que tenha observado o frenético e obsessivo afã do verdadeiro cientista em seu trabalho terá percebido o nível extremo de competição em que vive. Aquele sorriso, aquela amabilidade, aquela solidariedade civilizada, cooperativa, são frutos de uma férrea disciplina que se sobrepõe ao instinto fundamentalmente competitivo. E sem esta perpétua e obsessiva inclinação para o combate, o pesquisador não chega na frente.
Pois bem, a melhor medida de que alcançou o seu objetivo, isto é, a necessária incorporação de sua descoberta ao estoque de conhecimento compartilhado pela humanidade é o número de vezes que seu trabalho é citado. Pois se um trabalho não é citado é porque não foi lembrado, porque é irrelevante ou, então, porque não é original.
A retribuição natural da pesquisa científica é a citação, ou seja, a percepção de que o seu esforço é aproveitado e reconhecido por seus pares. Está, portanto, contida no índice de impacto ou seja, no número de citações por trabalho publicado, uma avaliação, um julgamento e um reconhecimento pelos pares.
Mas é justamente esta essencialidade o que fortemente afeta os cientistas brasileiros. Mas, agora que já encontramos no concurso miss Brasil uma analogia fértil, vamos tentar classificar as reações à divulgação do estudo da Folha.
É interessante notar que ninguém que estava bem colocado na hierarquia reclamou. Alguns acharam que deveriam estar melhor colocados. As maiores reclamações vieram dos que foram excluídos e julgavam merecer estar na lista. Vamos eliminar aqueles comentários água-com-açúcar daqueles que viram na publicação apenas uma oportunidade para novamente declinar os mesmos insossos ``chavões" de sempre, sem dizer absolutamente nada de relevante. Deixemos também de lado aqueles que reclamaram sem ter lido ou compreendido o espírito e a letra da publicação. Vamos lembrar que os dados se referem a citações e artigos publicados em revistas ``avalizadas" pelo Instituto para a Informação Científica (ISI) no período de 1981 a 1993, inclusos. Estão excluídos portanto cientistas e instituições que tenham publicado anteriormente a 81 mesmo que largamente citados no período 81-93. Pois, aparentemente, o que interessa neste levantamento é a atividade científica atual e não o glorioso passado de alguns indivíduos ou instituições. Vamos desqualificar também uma terceira categoria que reclama que outras ``qualidades" deveriam ser consideradas, tais como administração, didática e extensão. A Folha não divulgou um levantamento sobre o bom cidadão, da mesma maneira que o concurso de miss não distingue o operário do ano. É claro que qualquer interessado poderá complementar os dados individuais ou institucionais como quiser.
Mas vamos começar, portanto, com a mais renitente e a mais bem estruturada crítica à publicação pela Folha do levantamento. Ela não se dirige a atuação da Folha, a uma eventual impertinência sua, mas antes à própria validade deste tipo de avaliação. Esta escola tem dois componentes claros, uma de natureza defensivamente corporativista e outra ideológica. Além disso, duas vertentes são reconhecíveis, uma proveniente do setor de ciências exatas e outra das sociais.
O argumento básico, entretanto, é o mesmo. O Brasil, dado o seu estado de desenvolvimento, não se beneficiaria das pesquisas básicas, de fronteira, que ele mesmo realiza. Deveria antes deslocar esforços para setores aplicados. Realizar desenvolvimento industrial, agrícola. Consequentemente não deveria publicar em revistas internacionais, e consequentemente não deveriam ser os cientistas brasileiros citados. A publicação passa neste enfoque a ser considerado um desperdício, um luxo. Um cientista brasileiro atuando na fronteira do conhecimento fica sendo quase um criminoso. É como se o Brasil não tivesse futuro. Como se devesse preparar para o atraso, a estagnação. Quem se lembra de um tão decantado ministro da Fazenda do Governo Geisel que observou que o Brasil despendia menos que US$ 200 milhões por ano em pagamento de royalties, serviços técnicos e compra de tecnologia? Concluiu então que seria menos dispendioso se fechasse todas as instituições de pesquisa do Brasil e comprasse toda tecnologia que precisássemos fora. Hoje já percebemos que só tem acesso à tecnologia quem a pratica. Se não estamos ativamente envolvidos com ciência não temos acesso a ela. Ou fazemos pesquisa ou estamos condenados ao subdesenvolvimento. É claro que pesquisa fundamental não é suficiente para assegurar o progresso econômico, mas também é impossível uma nação sustentar sua evolução tecnológica sem apoio em pesquisa fundamental.
Dentro de certos limites, até as grandes organizações industriais mantêm programas de pesquisa fundamental, e não é por filantropia ou ingenuidade. É por razões eminentemente práticas. O complexo Bell, corporação do setor de telecomunicações dos EUA, publicava maior número de artigos em revistas de ciência básica do que as dez mais produtivas universidades do mundo juntas. O segundo lugar era da IBM. Competiam com as melhores universidades do mundo pelo menos ainda 20 grandes empresas. Com isto queremos mostrar que a atividade industrial moderna pressupõe, para ser internacionalmente ou mesmo nacionalmente competitiva, um esforço apreciável em pesquisa, tanto tecnológica quanto básica.
Uma derivação desta postura é a afirmativa de que engenheiros não publicam. Cientistas cacarejam orgulhosamente seus resultados como galinhas que acabam de botar seus ovos. Engenheiros querem transformar suas descobertas em bens e por isso amoitam. Se isto fosse verdade, deveríamos poder encontrar estes bens. Em realidade há tantas revistas publicando resultados de pesquisas aplicadas ou desenvolvimento tecnológico quantas há de física ou química. Parece que só engenheiros brasileiros fazem moita com seus resultados. No resto do mundo cacarejam tanto quanto os físicos. Aliás o exibicionismo do engenheiro acadêmico é tão grande que além de publicar seu nome publica, tipicamente, sua fotografia, junto a cada artigo. Em realidade muito engenheiro brasileiro publica tão bem quanto os melhores físicos.
O argumento de que alguns autores são mais citados do que outros porque atuam em áreas em que há maior número de pesquisadores é matematicamente incorreta. Se o campo de pesquisadores que citam aumenta, também aumenta o campo dos citados, simplesmente porque é o mesmo campo. Ou melhor, o número de pesquisadores que podem citar um certo trabalho entra duas vezes no cálculo, uma no denominador e outra no numerador, como diria a professora do grupo escolar. Portanto o número de citações por trabalho publicado não depende do número de pesquisadores atuando em cada área. É um resultado de matemática elementar.
Na década de 70, quando ainda estavam ativos Nachbin e Maurício Peixoto, foram eles incluídos em um levantamento preliminar entre os 17 cientistas mais citados no Brasil, com mais de 200 citações entre 1967 e 1981. Este exemplo deve convencer o leitor que a matemática não é uma seita à parte, inteiramente diferente dos demais ramos da ciência.
Outra derivação da categoria que critica em sua essência a publicação e a citação como indicadores de excelência é proveniente da área de ciências humanas. Aqui também se argumenta que para o Brasil é mais importante que aqui mesmo se publique. Que é mais difícil publicar nestas áreas do que em ciências exatas. Que em ciências humanas se publicam livros e não artigos. Que cientistas de humanas amadurecem mais tardiamente e até se pretende que é mais fácil exprimir-se nas línguas utilizadas em revistas internacionais nos setores de ciências exatas do que nos de humanas, ou sociais.
As respostas são óbvias. Idéias publicadas em revistas de circulação municipal têm difusão municipal e não sobrevivem. O número de revistas no setor de ciências humanas incluído na base de dados é equivalente ao de biomédicas ou de exatas. Se é mais difícil escrever um artigo de antropologia em inglês do que um de física, então que o antropólogo estude mais uma semana, faça um pouco mais de esforço. Na realidade escrever um artigo em outra língua é mais difícil para o pesquisador mais provinciano, seja ele antropólogo ou físico. Não é verdade também que um bom resultado em sociologia por ter tido como campo de coleta de dados o Brasil interesse mais o brasileiro do que o resto da humanidade. Toda pesquisa concreta se realiza em um espaço específico. E dela serão inferidas informações extensivas. É assim que se faz ciência.
Enfim, a triste verificação extraída dos dados apresentados pela Folha de baixíssimo número de publicações e ainda mais decepcionante índice de impacto apresentados por algumas áreas de ciências sociais não pode ser empurrada para baixo do tapete como uma peculiaridade do setor. Deve antes ser atribuído ao nível de profissionalismo ainda incipiente nestes campos no Brasil. Ao corporativismo defensivo que protege a mediocridade e impede uma saudável concorrência, à vitaliciedade precoce no nosso sistema universitário, aos abusos contra o regime de tempo integral e ao absenteísmo quase sempre generalizado de nosso corpo docente.
É possível mesmo afirmar que o mapa que se pode traçar com os dados de publicações e citações mostrado pela Folha coincide exatamente com aquele que se obteria indicando a existência e, simultaneamente, respeito ao regime de tempo integral. Não há milagres, e há muito pouca genialidade. Há o trabalho constante e sério de homens dedicados. E, às vezes, uma pitada de talento.
Bem, continuemos com nossa classificação. A próxima categoria é aquela em que incluímos os indivíduos que se consideram injustiçados. Para aqueles que têm 199 citações, o que se pode dizer é que trabalhem duro e talvez daqui a 5 anos a Folha publique mais uma lista. Houve um caso interessante de alguém que preferiu exibir seu curriculum vitae. É membro de seis organizações internacionais, academias, sociedades, ``quem é quem" etc. É claro que há academias e prêmios que significam prestígio. Mas a grande maioria, inclusive as seis mencionadas, são organizações abertas. Tanto quanto o Sport Club Corinthians. São tão seletivas quanto o PTB. E esta é mais uma demonstração da oportunidade da iniciativa da Folha. Este exemplo mostra como nossa cultura acadêmica ainda é ingênua.
Já temos uma analogia e já conseguimos classificar as manifestações em categorias. Podemos agora tentar explicar o fenômeno.
Estamos prontos para elaborar nosso modelo teórico. Partimos da distinção entre ser vivo e inanimado devido a Ortega Y Gasset. Ser vivo, ao contrário do inanimado, reage a um estímulo externo de maneira desproporcional à intensidade da excitação. A julgar pelas reações à publicação dos dados referentes a publicações e citações, cientistas brasileiros são seres vivos. E quanto menos produtivos mais vivos eles são. Vivem eles uma insuportável ambivalência. Sua profissão, por natureza, lhes impõe uma perene e intensa competição. Precisam descobrir algo que ninguém sabe. Só Deus. Estão em competição com o próprio Deus. São muitos e só alguns chegarão lá. Vão, portanto, quase sempre fracassar. Só há um primeiro lugar. Só há uma miss Universo. E não basta para muitas ser miss Caçapava. É melhor então que o concurso de miss Universo seja secreto. Que ninguém fique sabendo que na competição você ficou no 171º lugar.
Aí está o perfil daqueles que reclamaram, em sua maioria, qualquer que seja a roupagem, primitiva ou sofisticada, de sua retórica contestatória. Aí está também a demonstração do estágio embrionário do profissionalismo em que ainda se encontra o pesquisador brasileiro.
Quando o pesquisador brasileiro passar a ver sua atividade também como uma profissão convencional e não apenas como uma competição amadorística, o que exigirá uma certa autodisciplina, então aceitará com muita naturalidade uma hierarquia como aquela incluída na Folha, da mesma maneira que o operário brasileiro aplaude espontânea e alegremente o prêmio operário do ano, sem inveja, sem vaidades feridas.

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