São Paulo, segunda-feira, 19 de junho de 1995
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Argentina e Brasil

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Dizer que a droga é uma droga é mais do que um pleonasmo ou paródia de Gertrude Stein. É uma conclusão, sobretudo para o argentino Mario Juan Caballero, 21 anos, rapaz alegre por temperamento e desligado por ofício. Foi assim que se apresentou à polícia: desligado.
Adotara desde cedo uma ideologia já meio fora de moda, mas de sentido bastante elástico: paz e amor. Em matéria de paz, Mario Juan era contra a guerra do Vietnã, que já acabou, e contra a guerra atômica, que ainda não começou. Quanto ao amor, era que nem as religiões de hoje: ecumênico. Transava com todo mundo, menos com paraguaias e com peruanos. Discriminava umas e outros por motivos musicais e artísticos: abominava as guarânias paraguaias e a pintura cusquenha.
Na Argentina, vivera alguns meses com uma menina de 14 anos, até que a engravidou. Para preservar sua noção de paz, ele deu pontapés na barriga da moça, os dois eram contra o aborto, mas uma boa briga por um belo ideal (a paz individual) sempre vale a pena. É uma causa.
A sociedade castradora e reacionária perseguiu Mario Juan na pessoa de alguns policiais de Buenos Aires, e ele ouvira dizer a polícia brasileira era menos banal e mais compreensiva. Também ouvira notícias de nossas campanhas pela vida, pela cidadania plena e contra os agentes poluidores do universo.
Conhecera uma baiana que vivia deprimida por causa da camada de ozônio -e ele apressadamente concluiu que no Brasil todos vivíamos com essa preocupação. Na Argentina, segundo ele, só pensam em Maradona e na crise mexicana.
Assim era a cabeça de Mario Juan, que tinha repugnância pelos detritos industriais na mesma medida em que achara natural o vômito de sangue da menina que arrebentara com pontapés.
Foi violentado, madrugada de quinta-feira, na praia de Copacabana, junto à arrebentação, por um grupo de travestis depois de uma noite de incompreensões. Ao comissário, disse que se drogava para manter em níveis ideais o seu desligamento. Perguntado se além da droga tinha outros vícios, respondeu com orgulho: ``Tengo-los todos!"

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