São Paulo, terça-feira, 20 de junho de 1995
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'Eu corrigia o senso de distância de Buñuel'

LEON CAKOFF
ESPECIAL PARA A FOLHA, DA CIDADE DO MÉXICO

Gabriel Figueroa comenta, a seguir, sua relação com o cineasta americano Elia Kazan e com o espanhol Luis Buñuel.
*
O que você acha dos estereótipos de Hollywood que mostram os mexicanos sempre como bandoleiros?
Figueroa - Desafiei até o escritor John Steinbeck a aprender mais sobre a história mexicana antes de vir com uma versão definitiva de ``Zapata", que Elia Kazan dirigiu depois. A princípio, eu é que ia a Hollywood me encontrar com Steinbeck e Kazan para me inteirar do roteiro de ``Zapata".
Fui ao consulado americano pedir visto e me mandaram ao cônsul. Ele queria me fazer três perguntas. A primeira: ``O que você vai fazer nos Estados Unidos?" ``Não sei se você sabe, mas fui indicado para o Globo de Ouro", respondi. ``Quem te convida?", continuou o cônsul. ``Tenho aqui uma carta da 20th Century Fox me convidando para uma leitura do roteiro de `Zapata'."
E a terceira pergunta do cônsul foi aquela que eu já estava esperando: ``A que partido você pertence?" ``Isso não é da sua conta", disse, para o espanto das duas secretárias que taquigrafavam pateticamente a entrevista.
Mais patético ainda, colocando a mão na constituição americana, o cônsul me disse: ``Você é uma pessoa especial, e eu tenho o direito de fazer perguntas especiais".
Pois eu lhe disse: ``Vamos fazer o seguinte: tome de volta o selo que colaram lá embaixo no meu passaporte e devolva-me os meus US$ 10 que eu não quero mais ir para os Estados Unidos".
Folha - Foi assim que Steinbeck e Kazan vieram ao seu encontro no México?
Figueroa - Exatamente. Fiquei três dias trancado num quarto com Steinbeck explicando cada coisa absurda e ridícula que tinha no seu roteiro. Nem ele nem Kazan sabiam nada da história mexicana. O roteiro estava cheio de cenas ridículas de Zapata com seus encontros furtivos com a namorada.
E eu de Zapata era uma autoridade. Era zapatista desde criança. Os zapatistas vinham comer na minha casa. Fiz aos dois uma pergunta básica e elementar, e eles não souberam responder: ``Por que lutava Zapata?"
``You are very brave", veio me dizer Kazan em seguida. ``Atrever-se a discutir por três dias com Steinbeck e convencê-lo a reescrever um roteiro..." ``Eu não discuti com Steinbeck, eu discuti uma história que conheço e um mau roteiro", lhe disse.
Conclusão: voltaram a Hollywood, Steinbeck foi despedido do projeto e Kazan tentou depois envolver-me com um novo roteiro, igualmente ruim, sobre ``Zapata". Não aceitei mais trabalhar com ele por sua atitude de delatar e mandar gente para a cadeia (por atividades comunistas e antiamericanas).
Qual é a filmografia básica dos anos dourados do cinema mexicano?
Figueroa - Ajudei muito o progresso do cinema mexicano ficando no México. Os meus melhores filmes são ``Domínio dos Bárbaros", depois ``Maria Candelaria" (43), ``La Perla" (45), ``Enamorada" (46) e ``Pueblerito" (48), dirigidos por Emilio Fernández. Depois ``Os Esquecidos" e todos os filmes que fiz com Buñuel.
Folha - O que vem antes: as sombras de Figueroa ou dos filmes ``noir" americanos?
Figueroa - As minhas sombras eu tomei do expressionismo alemão. Mais do que sombras, prefiro falar de perspectivas. Para chegar a elas estudei todas as pinturas. Todos os pintores flamengos. Depois Velazques, de quem aprendi as perspectivas. Depois, os caprichos de Goya. Depois, toda a pintura mexicana e os seus muralistas.
Um dia, na casa de Dolores del Rio, Orozco me fez um elogio que considerei o máximo. Ele disse que eu tinha melhor perspectiva do que ele e que gostaria de me ver trabalhando. Foi um grande elogio, mas acho que ele tinha razão.
Mas o que vem antes de tudo é uma boa obra. Se não há um roteiro, não há filme. E em uma boa obra tem que haver sempre conflito. Sem conflito também não há filme. Um exemplo clássico é o de Orson Welles. Durante a Segunda Guerra, Walt Disney e Nelson Rockfeller convocaram intelectuais e artistas de todas as Américas para trabalhos conjuntos (a ``política de boa vizinhança").
Rockfeller, que era dono da RKO, mandou Orson Welles filmar o Carnaval no Brasil. Depois de longos meses, voltaram com o material e o projetaram a Rockfeller, que reagiu assim diante de Orson Welles: ``Parabéns, é o material mais bonito que já assisti. Agora mostre-me o roteiro..."
``Ele está escrito na manga da minha camisa", respondeu.
``Pois mande lavar a sua camisa", disse Rockfeller e despediu o maior cineasta do mundo. A carreira de Welles acabou com esse episódio. Onde já se viu um gênio sem o amparo de uma boa obra?
E passou o mesmo comigo. Fui com Emilio Fernández à Patagônia, em 1955, filmar ``La Tierra del Fuego se Apaga" num cenário natural assombroso, as nuvens em alta velocidade e o infinito à minha frente. Li o roteiro no avião e disse: ``Emilio, aqui não há conflito. Corremos o perigo de não haver filme..." Recebi um telegrama do laboratório argentino dizendo que eles haviam processado o melhor material de todos os tempos. E de que adiantou? Até hoje o filme não existe.
Folha - Essa ``política de boa vizinhança" nunca o envolveu pessoalmente?
Figueroa - Não. Tudo era pensado e feito como os americanos pensam e nos vêem. Cada mexicano, cada brasileiro sempre fizemos o ridículo em seus filmes.
Nesse tempo cheguei a conhecer a Carmen Miranda, uma pessoa adorável. Uma noite saímos para jantar no famoso Mocambo, em Hollywood, e aí o maestro parou tudo para anunciá-la. E executou um ``danzón" que ela resolveu dançar comigo.
Anos depois isso me deu coragem para dirigir uma sequência do filme ``A Noite do Iguana" (1963), de John Huston, com Ava Gardner. Aliás, pelo menos 30% desse filme é meu.
Preparei uma cena noturna, aquela em que ela é agarrada na praia. Só que nesse dia ela começou a beber mais cedo, coisa que gostava muito de fazer. Quando Huston soube, foi à cantina atrás dela, e beberam muito mais tequila juntos.
Lá pelas 18h ele pergunta se ela tinha certeza de que não ia mesmo filmar. ``Não é você que paga o meu salário, e daí?", desafiou Ava. ``Eu só lamento pelo Gabi (Gabriel Figueroa), ele preparou um `moon light' maravilhoso para você", disse Huston. ``Então eu filmo", ela disse e veio.
Havíamos preparado cinco câmeras. Estava mesmo tudo preparado para ficar bom. Mas aí John Huston me chamou num canto e disse: ``Consegui trazê-la, mas eu estou completamente bêbado. Não tenho condições de dirigir nada. Deixo por sua conta", e me passou a direção. Falei com Ava, disse que ela tinha que entrar pela esquerda, os ``beach boys" entram pela direita e começam a te tocar por todos os lados. Aí você dança um ``danzón".
``Mas o que é isso?", assustou-se Ava, também ``alta". Não tive dúvidas, mandei soltar o play-back e a ensinei a dançar. A cena tornou-se depois uma das mais famosas do filme.
Meses depois anunciaram o trailer do filme na televisão, convidei a família, vizinhos, empregados para assistir. Para surpresa geral, entra a Ava dançando comigo.
Folha - E como foi a experiência de filmar com Buñuel?
Figueroa - No começo não éramos amigos. Ele estava saindo de duas péssimas experiências -``Gran Cassino" e ``El Gran Calavera"... Queria ajudá-lo, sabia que tinha um grande talento. O produtor dele me deu então o roteiro de ``Os Esquecidos" (1950), e aceitei filmar com ele. Tivemos um incidente logo na primeira tomada do filme, o que serviu para nos aproximar e virarmos amigos para fazer mais seis filmes juntos.
Fiz um enquadramento de dois personagens e mostrei a Buñuel. Ele olhou e não gostou. Disse que queria uma enquadramento que começava dos joelhos para baixo. Achei um absurdo, mas obedeci e filmei daquele jeito.
Terminadas as filmagens daquele primeiro dia, chamei Buñuel e o desafiei a uma oposta: ``Quero que você me aponte um só quadro em que alguém tenha sido pintado dos joelhos para baixo", lhe disse.
No final ele não usou aquela sequência estranha e não me pagou a aposta. Meses depois me veio com uma reprodução de um quadro de Van Dyck em que aparecia um personagem muito secundário dos joelhos para baixo. Mas claro que ele estava brincando, não valia como exemplo, e ele sabia disso.
Graças à minha sinceridade desde o começo, Buñuel me fez uma confidência e pediu que o ajudasse nas filmagens: ``Não tenho senso de distância", me disse. ``Corrija-me sempre que me distanciar do tema e dos personagens." E assim sempre fiz com ele.
Buñuel tinha, por outro lado, o domínio absoluto de tudo que iria filmar. Cronometrava tudo, os passos dos atores, as falas, os movimentos de câmera, tudo. O material dele já saía pronto do laboratório para a edição. O aproveitamento de cada bobina era quase total.

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