São Paulo, terça-feira, 27 de junho de 1995
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Pelourinho gera polêmica

SILVIO CIOFFI
DO WORLD MEDIA

Não havia quem discordasse da necessidade de recuperação do Pelourinho (Salvador/BA), um dos grandes conjuntos arquitetônicos coloniais de todo o mundo.
Literalmente caindo, esse casario tombado pela Unesco em 1986 já tinha passado por restaurações, mas nunca por uma revitalização do porte da recém-realizada.
Mas há quem não goste do aspecto artificial que os prédios adquiriram. Para discutir a atual aparência do centro histórico, o World Media entrevistou o cantor e compositor Caetano Veloso, um baiano que conhece Salvador na sua essência.
A seguir, os principais trechos.

*
World Media - Quando Gilberto Gil presidia a Fundação Gregório de Matos (a secretaria de Cultura de Salvador), arquitetos como a italiana naturalizada brasileira Lina Bo Bardi (1914-1992) restauraram prédios no centro histórico. A Casa do Benin é um exemplo. A atual restauração é pior do que aquela?
Caetano Veloso -Não sou especialista para comparar tecnicamente as duas. Mas essa intervenção no Pelourinho tem uma importância tão grande que eu não gostaria de comentar apenas miudezas técnicas.
Tenho certeza que teríamos com Lina Bo Bardi um outro estilo de restauração. Talvez mais requintado, sem dúvida mais ousado. Ouvi dizer que Lina Bo Bardi queria deixar os prédios caiados de branco.
A primeira impressão é que o Pelourinho ficaria uma coisa distante do que eu estava habituado a ver desde criança. Ele nunca foi branco. Se isso fosse feito, é possível que o centro histórico de Salvador ficasse ``artificialmente de bom gosto".
Tudo se esclareceu. Ela disse: ``Eu não quero pintar as casas de branco, quero deixar as casas em branco, para que os que as usem pintem das cores que desejarem".
World Media - A restauração dos anos 70 não foi uma restauração de fachada, que deixou o interior das casas do jeito que estavam?
Caetano -Bom, eu não entrei muito nas casas nem naquela vez nem agora. Entrei no prédio do Senac e no hotel Pelourinho, que sofreram intervenção violenta. Outras também. Mas não sei dizer quantas e até que ponto. Mas as queixas referem-se sobretudo à impressão que dá o largo e o conjunto arquitetônico visto de fora. Ou seja, as fachadas, a pintura e o reboco.
Lembro claramente de duas reações. Do poeta brasileiro Décio Pignatari e da atriz norte-americana Candice Berger. Disseram: ``Puxa, mas isto aqui está parecendo uma cidade-cenográfica. Está parecendo Hollywood, é horrível, que decepção!"
Lembro que falei timidamente uma coisa que volto a repetir agora. Afirmei que não me incomodava com aquilo, porque tinha crescido numa cidade de interior da Bahia, de arquitetura colonial semelhante, que é Santo Amaro da Purificação.
Porém, que não tinha sido abandonada a indigentes e prostitutas. E que, portanto, tinha o mesmo tipo de arquitetura, o tratamento de renovar o reboco, pintar de novo a frente das casas todos os anos.
Frequentemente, a cidade inteira estava toda pintada de novo a cada fevereiro. É a época das festas de Nossa Senhora da Purificação, a padroeira da cidade.
Isso fazia com que Santo Amaro ficasse alegre, bonita e festiva. Então também deveria parecer uma cidade-cenográfica para quem chegasse. Para mim, era a minha cidade real, que eu vivia desde pequeno.
Esse negócio de estarem todas as casas rebocadas e pintadas de novo me parece um aspecto literalmente superficial. As pessoas ficam muitas vezes com uma espécie de saudade do limo e do reboco corroído, que dá uma impressão de jóias, relíquias vetustas da arquitetura de urbanismo.
Não me sinto tão impressionado com isso por causa dessa minha experiência desde pequeno. Por outro lado, é bonito quando está gasto, quando tem limo ou quando tem uma marca da velhice das edificações.
Mas é bonito também quando tem gente vivendo -e que pinta as casas. E, se foi uma determinação governamental mandar pintar, simplesmente tudo bem.
World Media - Você diz que na sua infância o Pelourinho era colorido. Quem ia ao centro histórico?
Caetano -Pouca gente de classe média frequentava o Pelourinho. Eu ia muito. Gostava de andar sozinho. Era tudo muito sujo, habitado por prostitutas, por pobres. Dividiam restos de sobrado em forma de cortiço. Mas tinha lugar que a gente às vezes entrava para beber cerveja, conversar.
World Media - Isso nos anos 60, 70?
Caetano -Nos anos 60 -1964, 1965 e antes disso, quando tinha 17 anos, quando me mudei para Salvador. Ia muito à tarde sentar lá em cima, na calçada, onde hoje é a Fundação Casa de Jorge Amado. Ficava olhando o casario. Achava muito bonito.
Ficava de certa forma estudando a composição. Para ser sincero, olhava como cineasta, com vontade de fazer cinema.
World Media - Em 86, a Unesco tombou o centro histórico e declarou o Pelourinho patrimônio da humanidade. Qual é a importância disso?
Caetano -Acho muito bom. O reconhecimento formal é importante, dá uma força. Mas o que mantém um bairro em pé é a vida dele. A revitalização começou com o crescimento do bloco afro Olodum (um grupo que cultua tradições e que participou do disco ``Graceland", de Paul Simon). E do que se tornou para a população de Salvador a terça-feira da bênção de Santo Antônio, na igreja de São Francisco.
As populações de todas as classes de Salvador passaram a ter um atrativo interessante, o lugar ficou revitalizado. Para mim, é emocionante que justamente a sede do Olodum, de onde se comandou essa verdadeira obra de tombamento, tenha sido restaurada pela Lina Bo Bardi.
Agora, o trabalho do então governador Antonio Carlos Magalhães e do arquiteto Vivaldo da Costa Lima foi bem-feito, é louvável. Comparativamente, foi mais extenso, bem mais abrangente.
E é mil vezes mais louvável porque foi desencadeado pelo Olodum. Quer dizer, na minha opinião o Pelourinho estava revitalizado quando se deu a intervenção meramente física dos edifícios.

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