São Paulo, terça-feira, 27 de junho de 1995
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A Bahia é um presépio

JORGE AMADO
ESPECIAL PARA O WORLD MEDIA

Há quem a chame de Salvador. Assim a designam nos bilhetes de avião, em algumas cartas geográficas. O nome completo é Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos. Os velhos baianos, porém -é o meu caso-, dizem apenas Bahia.
Plantada na montanha, cercada de um mar deslumbrante. Verde-azul, oceano sem limites, mais além do Farol da Barra, as ondas lavando quilômetros de praia de branca areia à sombra dos coqueiros.
Os saveiros carregados de frutas -melancias, cajus, abacaxis, mangas, bananas-, de tijolos, telhas e cerâmica vão e vêm no rumo do rio Paraguaçu, onde crescem os canaviais e dormem pequenas cidades que foram prósperas nos tempos do Império, dos senhores de engenho.
Algumas delas são repositórios do passado de lutas pela independência da pátria, lembranças guardadas no casario colonial e na devoção das confrarias nascidas nas senzalas dos escravos.
Vista do golfo, a cidade da Bahia é um presépio -perdoem-me o lugar comum, é a imagem perfeita. Sobe pela montanha em ladeiras íngremes e, no alto, se espalha em ruas e becos onde habita o mistério e se forja a cultura popular.
Ruas de canto e dança, nelas vive um povo mestiço, inventivo e criador, produto da mistura de raças, de sangues e culturas.
O mistério escorre sobre a cidade como um óleo. Todos o percebem e o sentem, cada um pode tocá-lo com os dedos se quiser. Mas ninguém pode localizá-lo, saber onde começa, de onde vem.
As batidas dos atabaques ressoam nas ruas e nos corações anunciando as cerimônias dos candomblés (a religião afro-brasileira), das festas para os orixás, Oxalá, Xangô, Oxum, Oxóssi, Iemanjá, Oxumarê, que é o arco-íris.
Os deuses negros chegaram da África no bojo dos navios de escravos. Nos esconsos da então recente cidade da Bahia se mesclaram com as crenças indígenas e com os santos católicos desembarcados das caravelas dos descobridores ibéricos.
Assim surgiram novos deuses, as crenças brasileiras, a cultura do povo. Tudo na cidade é mistura e invenção.
Que branco mais branco não carrega sangue negro em suas veias azuis? Que negro da maior negritude não tem em suas veias africanas sangue branco?
Quando se misturam os três sangues -indígena, negro e branco-, nasce a formosura inigualável das mulatas cabo-verde, criaturas de sonho, um sonho de amor.
Duas realidades se cruzam e se entrelaçam na cidade negra da Bahia, a mais negra das cidades brasileiras. A realidade imediata, cotidiana, triste e cruel.
Reflete a pobreza do povo sua luta diária e difícil para subsistir. Milhares de crianças perambulam abandonadas nas ruas, sem lar, sem trabalho, sem escola.
A fortuna pertence a um pequeno punhado de gente, cabendo à imensa maioria as dificuldades e o infortúnio.
Existe, porém, a mistura de raças e culturas, que forja a nação brasileira e lhe dá ânimo e capacidade para a alegria.
Não por acaso, fazemos festa em qualquer ocasião, em qualquer rua. Não por acaso, o Pelourinho é o reino maior da música e da dança, ali nasce o Carnaval com o desfile do afoxé dos Filhos de Gandhi.
O centro histórico da cidade é patrimônio da humanidade inscrito no livro da Unesco: no Pelourinho bate o coração da urbe, lá está o que temos de mais profundo e valioso em nossa memória de povo.
Num dos casarões do Pelourinho, no maior e mais alto deles, vivi parte de minha adolescência. Menino de 15 anos, ali cursei as universidades da vida popular, sentindo pulsar o coração do povo.
Assisti, no correr do tempo, à lenta e permanente destruição daquela imensa beleza, o aviltamento de nossa memória.
Cheguei a pensar que tudo estava perdido e que a parte mais bela da cidade estava fadada a desaparecer para que nas ruínas do casario colonial se elevassem arranha-céus iguais na sua feiúra a todos os demais que degradam os cinco continentes.
Mas Deus é brasileiro -como se diz por aqui-, e finalmente um governador do Estado assumiu a tarefa da restauração do centro histórico da Bahia.
Quero escrever aqui o nome desse governador -Antonio Carlos Magalhães-, pois deve-se louvar quem fez por merecer o louvor e o aplauso -correligionário ou adversário político, não importa.
No Pelourinho cursei minhas universidades, tudo o que sei aprendi com o povo. Nos candomblés, aprendi que a alegria não é um pecado e que o inferno não existe.
No sincretismo das religiões animistas, Exu, o mais travesso dos orixás, confunde-se com o diabo dos cristãos.
Em realidade, Exu não é o diabo. É o bom guardião, aquele que se coloca nas encruzilhadas para evitar os desvios e os erros. Exu protege a Bahia.
Casario vindo do tempo dos afonsinhos, fortalezas lusitanas erguidas para todo o sempre -sobretudo, o forte de São Marcelo em meio às águas do golfo, imensa tartaruga. Quem o viu não o esquecerá jamais. É o umbigo da cidade.
Inúmeras são as igrejas católicas, cada qual mais bela. Da magnificência da catedral à riqueza da igreja de São Francisco, sucedem-se templos onde as crenças da Europa e da África se misturam.
Para que dessa mistura nascesse uma religião brasileira, cuja festa principal é a procissão da Lavagem do Bonfim, procissão das Águas de Oxalá: festa de candomblé no adro da igreja católica. Em nenhum outro lugar do mundo se pode assistir a espetáculo semelhante.
Nesta cidade da Bahia vive um povo imaginoso e sonhador, forte da força da mestiçagem, cordial e alegre.
A cada dia inventa um ritmo novo para a dança do próximo Carnaval. Música e baile, riso solto desafiando a miséria, na certeza de que um dia a cidade da Bahia terá apenas uma realidade: a do povo liberto do que é feio e triste, dono de seu destino.

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