São Paulo, terça-feira, 27 de junho de 1995
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A única saída é fugir para o campo?

WILLIAM ECHIKSON
DO WORLD MEDIA

O século 20 viu a consagração do processo de urbanização e suas consequências -a extensão contínua dos subúrbios. Em quase todo o mundo, aproxima-se a era da urbanização total e de uma sociedade liberada do dualismo entre a cidade e o campo.
Para uns, a cidade moderna simboliza a essência da cultura, o paraíso da civilização. Para outros, essas aglomerações atingidas de gigantismo aparentam-se a monstros e estão associadas à poluição, à criminalidade e ao estresse. A única saída, para esses críticos, é fugir para o campo.
Reunidos pelo World Media, a filósofa Anne Cauquelin e o pesquisador Henrik Reeh sustentam que é impossível fugir dos arredores urbanos. Logo, previnem eles, a cidade estará em toda a parte.
A seguir, trechos do debate.
*
World Media - Qual é sua visão da cidade moderna?
Henrik Reeh - Não se pode negar a amplitude da metamorfose urbana que se acelera há mais de dois séculos. Quem mora numa metrópole que conta com 10 ou 20 milhões de habitantes tem motivos para estar horrorizado com o fenômeno urbano.
No entanto, com muita frequência, o morador consegue criar uma imagem de sua cidade -certamente fragmentada, mas coerente e suportável. Longe de ser monstruosa, essa concepção pessoal acentua os aspectos mágicos da vida urbana.
Anne Cauquelin - O que conta hoje é o comportamento urbano e não mais a oposição campo/cidade, que é obsoleta. O modelo medieval de cidade, com suas portas e barreiras, desaparece completamente. Hoje, é muito difícil determinar uma fronteira material entre a cidade e o exterior.
No Japão, esses fenômenos são levados ao extremo. Não se sai de Tóquio. O urbano é onipresente, os únicos lugares não-construídos são aqueles em que é impossível fazê-lo, como nas montanhas.
Na Europa, há apenas ilhotas protegidas no seio de uma enorme aglomeração que cobre o território. São os últimos testemunhos, os últimos representantes da cidade passada. Constituem identificações psicológicas e simbólicas da cidade tradicional.
World Media - Vamos continuar a viver na cidade ou voltar para o campo?
Reeh - Antigamente, as pessoas moravam e trabalhavam no mesmo lugar. Nenhum bairro tinha o rótulo de uma classe social particular. A população se misturava, mais ou menos harmoniosamente.
O resultado é que havia uma maior interferência entre as diferentes atividades dos habitantes. A cidade formava, então, um pequeno mundo que continha todas as funções da vida humana e social.
Essa situação modificou-se radicalmente no século 19. Desde o fim da Segunda Guerra, o centro da cidade conheceu um processo contínuo de homogeneização.
Progressivamente, as atividades industriais e as classes populares foram empurradas para fora. A cidade perdeu sua função de produção, suas oficinas.
Copenhague (Dinamarca) é um exemplo. Perdeu, assim, há uns 20 anos, centenas de milhares de habitantes e de empregos. Esse fenômeno cria um problema enorme para a municipalidade. Isso porque se as atividades de produção são deslocadas, os problemas sociais subsistem.
Cauquelin - O teletrabalho é um outro exemplo desse processo de redefinição da cidade: vivendo no campo, trabalha-se com a cidade, pela cidade e como na cidade. Trata-se, portanto, de aprender o comportamento urbano e não mais de se ligar a uma compreensão espacial da cidade.
A existência de uma cidade poderia estar associada à possibilidade de se religar a uma ou várias redes. Sem essa conexão, algumas cidades, mesmo existindo materialmente, poderiam desaparecer do mapa.
Reeh - A importância do teletrabalho não deve ser supervalorizada. Diz respeito apenas a um número restrito de profissionais: escritores, tradutores, jornalistas.
A maioria das outras profissões requer presença no escritório, necessária para a criação de um meio intelectual comum. Do mesmo modo, a cidade é necessária para encontrar outras pessoas, para ter encontros inesperados, encontros imprevisíveis.
World Media - As megalópoles que não se beneficiam do desenvolvimento tecnológico não são colocadas de lado?
Cauquelin - Realmente, a sociedade de comunicação deixa de lado todos os países que não têm acesso a essas redes. Cidades do Terceiro Mundo apresentam mais pontos comuns com cidades da Idade Média do que com as aglomerações modernas.
Hoje, a cidade ainda responde a uma definição espacial, diferenciando-se radicalmente do resto do território. Nos países ocidentais, ao contrário, o urbano não pára de se estender, às custas do espaço rural.
Vivemos a fase de transição da sociedade industrial, marcada pela dualidade da cidade-campo, para a pós-industrial, caracterizada por uma urbanização quase total.
World Media - Quando o assunto é concepção da cidade, é possível identificar várias escolas opostas?
Cauquelin - Poderíamos opor os ``fetichistas" aos ``loucos pelas redes". Os primeiros têm uma visão seletiva da cidade. Os amantes da cidade trabalham sobre a memória, ligando-se apenas a alguns fragmentos, a monumentos-símbolos -pedaços escolhidos que têm poder de fetiche.
Para os segundos, a cidade clássica não corresponde mais a nenhuma realidade. Só conta a inserção em redes internacionais. A cidade é um ninho de comutações.
Reeh - Essas duas correntes coexistem, mas é preciso unir as duas perspectivas. Em vez de pretender que a cidade responda sempre à mesma abordagem, é necessário considerar a vida urbana no seu encontro com os fluxos sociais e de informação.
E, inversamente, em vez de considerar a mídia como a responsável pelo fim da vida urbana, deveríamos vê-la como a fonte virtual de uma nova dinâmica urbana.
A urbanidade contemporânea é bem mais complexa para ser reduzida a um único modelo sócio-cultural.
Cauquelin - Pode-se aceitar a existência das redes, mas pode-se permanecer ligado à poesia da cidade, ao encanto que emana de Copenhague, Londres ou Paris. Toda essa cultura, essa memória milenar, não pode ser esquecida facilmente.
World Media - Que lugar sobra para a cultura não-informatizada?
Reeh - Copenhague está no meio de um debate animado a esse respeito. A equipe encarregada das manifestações ligadas à escolha dela como capital cultural européia, em 1996, pertence à geração de 68 e, portanto, à antiga contracultura.
Até agora, esse meio político tinha se oposto aos grande projetos de infra-estruturas urbana prometidos pelo governo em nome do crescimento econômico.
Ora, se a manifestação cultural visa, principalmente, relançar a vida urbana, é ao mesmo tempo um modo de legitimar uma estratégia de crescimento tradicional.
Tudo se passa como se, de repente, a cidade e as manifestações culturais pudessem aceitar propósitos políticos. Quando o assunto é cultura, as pessoas aceitam facilmente coisas que normalmente recusariam.

ANNE CAUQUELIN é filósofa, escritora, ensaísta e pintora. É autora de inúmeras obras de filosofia, dentre as quais ``Ensaio da Filosofia Urbana", ``A Noite, A Cidade" e, mais recentemente, ``Os Animais de Aristóteles";
HENRIK REET é pesquisador em cultura urbana no Centro de Pesquisas em Ciências Humanas da Universidade de Odense. É autor de vários livros sobre urbanismo, dentre os quais ``O Labirinto do Texto Urbano; Walter Benjamin e Paris do Século 19", ``Espelhos da Cidade" e a ``Cidade e Velocidade na Obra de Paul Virilio".

Tradução de Bertha Halpern Gurovitz.

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