São Paulo, terça-feira, 27 de junho de 1995
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'Minha geração veio do teatro de imagem'

DA REPORTAGEM LOCAL

O dramaturgo Tony Kushner questiona o papa João Paulo 2º e diz que os católicos `merecem algo melhor'
Na terceira e última parte da entrevista com o autor americano Tony Kushner, ele fala de uma nova geração de autores no teatro.

Folha - Mas você vê alguma ligação entre o seu trabalho e o de escritores como Han Ong e Anna Deavere Smith?
Kushner - Ah, sim. Nós fomos todos muito influenciados pelo trabalho de invenção diretorial do teatro de imagens. Foi como que um desafio feito por aquele teatro, à própria noção de teatralidade, o que eu penso que muitos dramaturgos haviam como que abandonado. Nós tínhamos esquecido o quanto de mágica você pode fazer no palco. Eu também penso que muitos de nós fomos influenciados pelos escritores socialistas ingleses, especialmente por Carol Churchill, que teve um grande impacto neste país.
Folha - E a política?
Kushner - Todos nós escolhemos, em certo grau, uma política de identidade. Todas essas peças, todos esses dramaturgos lidam com questões de tribalismo e nacionalismo de vários tipos, e internacionalismo, e cultura, e multiculturalismo. São todos aspectos de algo que você poderia chamar vagamente de política de identidade, o que é talvez a questão política do momento, eu acho. É um dos nossos pontos fortes, mas também um dos nossos pontos fracos, como uma geração de escritores.
Há outras questões, especialmente questões econômicas, com as quais nós paramos de lidar e às quais precisamos provavelmente voltar agora, porque a direita teve uma vitória completa no campo do discurso da economia, e isso os torna enormemente fortes. Nós temos muito o que pensar. Mas nós somos uma geração identificável de escritores, não há dúvida.
Folha - Depois de ``Angels in America", uma geração anterior de escritores, como o inglês Harold Pinter e os americanos Arthur Miller e Edward Albee, voltou a escrever, voltou a escrever peças longas. Como você vê o novo trabalho deles?
Kushner - Eu gosto muito, de uma parte. Eu gostei de ``Três Mulheres Altas", de Albee. Eu tenho reações diferentes em relação a cada um daqueles autores. Pinter é um grande escritor. (ri) Você sabe, eu não quero cometer uma indiscrição. Vamos deixar assim.
Folha - Voltando a ``Angels in America", você vê alguma ligação entre o seu personagem Roy Cohn, que é baseado no ativista de direita, e o líder da direita cristã americana Ralph Reed?
Kushner - Não. Ele é muito mais interessante. Uma coisa maravilhosa sobre Roy é que ele nunca foi um mentiroso. Eu acredito que ele era louco e que ele era uma pessoa de contradições imensas. Eu acredito que isso é verdade, não só do personagem que eu fiz, mas também da própria pessoa. Eu acredito que ele queria viver aquelas contradições abertamente, completamente. Ele era orgulhoso da sua criminalidade.
Ralph Reed está agora tentando fingir que ele não é um teocrata, está tentando fingir que ele é um democrata, que ele acredita na democracia pluralista. O homem é um ``mulah". Ele acredita num governo por autoridade religiosa.
Eu não penso que seria, de maneira alguma, um exagero dizer que o homem é um fascista. Talvez não no sentido clássico, mas o homem é profundamente antidemocrático, e eu penso que ele não hesitaria, por um segundo, em usar a violência e o poder do governo dos Estados Unidos para esmagar mulheres que procurem fazer um aborto ou que procurem emprego, lésbicas e gays, ou qualquer outro que entre no caminho da direita cristã.
Isso faz com que ele seja muito menos interessante do que Roy Cohn, que apegou-se às suas contradições só para encontrar o coração do conservadorismo americano. A hipocrisia não é assim tão interessante, para mim. Ralph Reed é muito banal. Roy foi um grande vilão. Essa é a diferença.
Folha - Você cria anjos para as suas peças. Você escreve sobre religião. Você descreve fatos como a Perestroika como milagres. Você prescreve teologia para as pessoas estudarem. Você acredita em Deus?
Kushner - Eu não sei. Eu sou um agnóstico. Ser um agnóstico é uma posição mais complicada. É abraçar uma falta de certeza, como condição. Mas é uma condição difícil de abraçar. Agnosticismo não é indiferente. Agnosticismo é uma espécie de ambivalência torturante que você... Você está simplesmente dizendo que não tem provas. Nada que seja forte o bastante para levá-lo à fé religiosa, mas nada que seja forte o bastante para mover você na direção da certeza da não-existência de Deus. Essa é a condição em que estou agora.
Eu sinto que posso estar sendo impelido na direção da fé, se é que eu estou sendo impelido em alguma direção. Certamente eu estou muito tocado por uma série de tradições religiosas diferentes. Eu me considero um escritor muito profundamente judeu. E eu sempre fui fascinado por aspectos do cristianismo, e muito pelo Jesus que você encontra no Novo Testamento. O Sermão da Montanha é um documento extraordinário. Se os cristãos em geral se comportassem da maneira que Jesus disse a eles para se comportarem no Sermão da Montanha, haveria bem menos problemas no mundo. Infelizmente, os cristãos, especialmente o papa, simplesmente não leram o Sermão da Montanha.
Folha - O papa João Paulo 2º, que chegou a ser ator na Polônia, escreveu em seu livro mais recente, citando André Maulraux, que o século 21 vai ser o século da religião, ou não será de forma alguma. Você concorda com isso?
Kushner - Eu não acredito que este papa atual tenha a menor idéia do que é a religião. Eu acho que ele é profundamente cínico e um homem rancoroso, basicamente. Eu não sei a resposta para a sua pergunta. Quer dizer, eu acredito que também deveria ser o século do socialismo ou não será de forma alguma. Eu ficaria muito mais feliz com algo assim. Se o que ele está dizendo é que vai ser um século em que os homossexuais vão ser, ou exterminados, ou presos, um século em que ninguém vai poder conseguir um aborto, um século em que onde a sexualidade vai ser relegada outra vez à função puramente de procriação, então não vai ser um século em que eu espero viver.
O aiatolá concordaria com ele. Mas eu penso que eles são basicamente da mesma linha. O que eu espero é que, quando ele tiver partido, nós vamos ter um papa decente outra vez. Alguém como João 23, porque eu acredito que há um grande potencial para o bem na igreja e eu acho que ele a transformou, basicamente, numa instituição para a promoção do mal. Eu lamento por isso, porque eu acredito que os católicos merecem algo mais do que ele.
Folha - Como foi a sua relação com o diretor católico Declan Donnellan, de ``Angels in America"?
Kushner - Muito boa. Nós vamos trabalhar juntos outra vez.
Folha - Vocês discutiram religião alguma vez? Vocês tiveram algum conflito?
Kushner - Bem, nós não tivemos conflitos. Nós tivemos discussões muito interessantes, sobre questões... Nós tivemos mais conflitos sobre ação política, talvez, sobre ação política homossexual. É uma relação complicada, mas nós nunca tivemos discordâncias mais fortes sobre religião ou algo assim. Eu acho o catolicismo dele muito comovente, a versão dele para o catolicismo.
Folha - Você disse que planeja trabalhar com ele outra vez. Vai ser a terceira peça de ``Angels in America"?
Kushner - Talvez. Eu certamente gostaria que Donnellan fizesse... Mas isso é para daqui a alguns anos. Eu tenho uma outra idéia para uma peça, sobre a qual nós conversamos. É baseada num livro e eu estou em negociações agora.
Folha - Como foi o seu trabalho com o diretor George Wolfe, na montagem de ``Angels" em Nova York?
Kushner - Foi maravilhoso. Nós também estamos trabalhando juntos numa peça que vai estrear no National Theatre, em Londres, em 1996. É uma nova peça que eu estou escrevendo, sobre a relação entre a indústria têxtil britânica e a escravidão americana, no século 19. Eu estou no processo de escrever, agora.
Folha - ``Angels in America" está para se transformar em filme, dirigido por Robert Altman. Por que você escolheu Altman?
Kushner - Eu amo o trabalho dele. Ele é um grande diretor. É a pessoa ideal, em muitas maneiras, para o trabalho. Eu sinto que ``Perestroika", a segunda parte de ``Angels", é em certo grau um filme de Robert Altman. Eu usei a forma que ele criou para ``Nashville". É a idéia altimaniana de um épico.

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