São Paulo, terça-feira, 27 de junho de 1995
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Karaokê e democracia

CANDIDO MENDES

O desfecho da greve dos petroleiros não permite qualquer menosprezo ao êxito do governo. Seu epílogo não é o das forras oratórias dos áulicos, transformados em ferrabrases do rescaldo, depois de vencida a duríssima queda-de-braço. O que está em causa é um aprofundamento do processo democrático, que nos deixa a anos-luz do Brasil do ``tudo bem" e do blefe permanente. Não funciona mais o karaokê de Sarney e Itamar.
O governo joga tudo para acabar com a greve, dentro do que lhe permite o estado de Direito. O sindicato mostra a coesão fortíssima de seus membros e larga toda rede para enfrentar o risco das suas reivindicações.
Os petroleiros se organizaram de forma inédita para o confronto, com a criação de fundos de assistência e preparo para uma guerra de trincheiras e longuíssimo prazo. Nossos sindicatos públicos acostumaram-se à tradição política da greve paternalista, diante de governos acostumados a não pagar para ver a última confrontação.
E um Executivo intrinsecamente democrático, como o de FHC, de saída facilita o jogo da radicalização ao velho estilo. A derrota da classe mais poderosa do salariado vinculado à empresa pública permite duas leituras.
Uma, imediata, do que representa o alcance das vitórias do governo, que jogou com todos os seus recursos -sem as presunções de acordo a meio caminho-, quando se interrompem serviços essenciais à população.
Outra, da sociedade civil, que vê, a longo prazo, junto à consolidação democrática, o reforço da dureza dos seus pleitos, perdidas as mímicas da intransigência. O país que emerge deste junho e reclama um novo formato para as organizações sindicais, saídas do karaokê paternalista do Planalto.
O guarda-chuva inexpugnável de FHC foi o rigoroso cumprimento das decisões repetidas dos tribunais do Trabalho. Mas o que sobrenada é a interrogação decisiva de Vicentinho, a marcar a evolução, a prazo médio, desses conflitos. Quando o Judiciário deixou de julgar abusiva, desde 78, a greve de serviços essenciais do Estado?
As conquistas dessas classes se deram ao arrepio das Cortes, forçando estados de fato para obtenção de suas vantagens. O pânico da desordem tornara, na prática, letra morta o direito à greve de petroleiros, portuários ou eletricitários, garantida pela Constituição.
O governo soube se controlar, sem abrir mão de nenhuma medida rigorosamente democrática de coerção dos grevistas. Manteve os tanques rentes ao alambrado das fábricas. Mobilizou estoques internacionais. Levantou equipes de reserva para tripular as refinarias. Mas ainda -hoje ninguém duvida- não pagará os dias parados, exigirá indenização por prejuízos à economia nacional e demitirá a esmo, ferindo a classe toda e não as suas lideranças.
Virando a página, o Executivo passa a dispensar os bons serviços do Legislativo ou dos notáveis nacionais no confronto que é seu. O novo jogo adulto da greve se decide, entretanto, diante da sua repercussão popular. Perderam-no os petroleiros por menosprezar o impacto das filas insuportáveis, à caça dos bujões de gás. O incômodo monstro, entretanto, pode ser contornado, como mostrou a Prefeitura de Santos, garantindo o suprimento de combustível às periferias estratégicas. A bem, no futuro, de uma logística mais ágil, de poupar os mais pobres do castigo das paralisações.
Historicamente o adensamento democrático implicará a perda do automatismo da condenação pelo Judiciário das greves nos serviços essenciais, tornando mais complexa e flexível a arguição recíproca dos direitos em confronto. O problema só faz crescer quando se atenta a que o sucesso do Real, a longo prazo, se confunde não só com a estabilidade, mas também com a rigidez da distribuição da renda nacional.
Deparamo-nos, a cada dia, com o mal-estar argentino, antecipando os conflitos de amadurecimento do nosso plano econômico. Vivemos até hoje na esteira do varguismo, de uma fixação claramente política do valor dos salários e da aferição do tolerável nas relações básicas entre capital e trabalho.
A valer o ingresso na economia de mercado, na mesma proporção de nosso fortalecimento democrático, como fica, na transição, a paga do trabalhador que não pode ainda depender da produtividade do sistema ou das benesses e incentivos do patronato? Não se exclua, nesse cenário, uma concatenação possível de greves, que fugirão do isolamento dos petroleiros, e da mistura entre a reivindicação salarial -estrita, doida, contaminadora- e a ideológica.
A implantação de uma verdadeira economia de mercado reclama, paradoxalmente, regras de jogo fora das durezas e surpresas do liberalismo. Supõe arbitragens e intervenções neopaternalistas do governo, no novo pacto social, que se transforma na segunda perna do êxito do Real. A tarefa apenas começa, após o primeiro aniversário da quebra de nossa inflação. Quem sabe agora, como FHC, até onde podem ir os tanques, sabe até onde podem chegar os salários, para a definitiva criação de uma social-democracia brasileira.

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