São Paulo, domingo, 2 de julho de 1995
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Os dilemas do Real

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA<PW:POPUP,2,0.5>RITA<UN-> .

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Ao invés de distrair a opinião pública com propaganda para comemorar o aniversário do Real, o governo deveria gastar os recursos dos contribuintes para revelar os problemas que ameaçam o plano e que não está conseguindo solucionar. Para ver se, em conjunto com a sociedade, os partidos e os sindicatos, consegue salvaguardar a estabilidade sem mergulhar o país numa crise recessiva como aquela que assola o México e a Argentina, que também trilharam os caminhos tortuosos do ajuste neoliberal com âncora cambial.
O Real teve a vantagem de rememorar o quanto é bom viver numa economia com preços estáveis, onde se pode comparar o custo das mercadorias, sem aquela loucura de milhares de números que mudam e se multiplicam a cada dia. Porém, melhor ainda seria viver num país com preços baixos, onde a maioria da população tivesse recursos para adquiri-las. O fato é que o Real colocou a economia brasileira entre as mais caras do mundo e os preços se estabilizaram nas nuvens, tornando muito alto o nosso custo de vida. O governo não tem motivo de se vangloriar só porque a cesta básica caiu de R$ 106,00, na véspera do Real, para os R$ 101,00 de hoje, porque antes do plano ela custava somente R$ 80,00. Não vejo razão para comemorar um salário mínimo de R$ 100,00 quando o aluguel de um apartamentozinho de dois quartos na periferia custa R$ 300,00 por mês, e uma refeição frugal, num restaurante modesto, não fica por menos de R$ 10,00. Por enquanto, essa alta de preços generalizada, que foi causada pelo próprio Real, ainda não exerceu seu impacto, graças à euforia de consumo da primeira fase do plano, quando a economia se aqueceu devido à grande entrada de importados e de capital externo, à redução do imposto inflacionário e, particularmente, à expansão do crédito e queima de poupança.
Porém agora, quando vem a fase das vacas magras, quando o ``efeito tequila" afugentou parte dos capitais especulativos que inchavam nossas reservas, quando os consumidores atingem o limite de endividamento, a economia ameaça entrar em recessão e os preços altos irão pesar mais no bolso dos trabalhadores. Em face das dificuldades para conter a alta de preços com a abertura comercial e o dólar barato, o governo apelou para o velho recurso de apertar o crédito ao consumidor e o capital de giro, que ficaram com os juros mais altos do planeta, da ordem de 12% a 15% ao mês. Conseguiu baixar a demanda e desaquecer as vendas. Porém, ao custo de uma avalanche de títulos protestados e concordatas, como não se via nos últimos dez anos, superando as dos planos Collor e Cruzado 2. Conclusão: o governo teve de voltar atrás, diminuindo o compulsório dos bancos e permitindo o parcelamento dos débitos dos consumidores. Ao invés de promover a expansão da oferta, garantindo investimentos de longo prazo, com taxas de juros baixas, prefere asfixiar a demanda, reduzindo as atividades.
Para frear a festa dos importados, e consertar o rombo aberto em nossas contas externas, o governo teve de recuar na sua política de liberalização comercial, fazendo as primeiras desvalorizações do real e implantando restrições às importações, por meio de cotas ao setor automobilístico, que podem ser estendidas a outros setores. Essa política errática do abre e fecha é contraproducente, mas é o preço a se pagar pela falta de uma política industrial definida, para nortear a abertura comercial, estabelecendo cotas de importação nos lugares certos, como faz a maioria dos países, e não ficar ao sabor das pressões de grupos de interesses. Dessa maneira, desorganiza a produção (pois há empresas que deixaram de investir aqui para importar) e desnorteia o mercado, que precisa de parâmetros sólidos de longo prazo para realizar seus investimentos com segurança.
Isso demonstra que a um ano de seu lançamento, o Real não está nada sólido e defronta-se com um sério dilema que ameaça justamente os seus alicerces. Se mantiver a âncora cambial por mais tempo e continuar com a abertura comercial que Washington prega para os outros países, mas não pratica, pode até manter a inflação sob controle ainda por algum tempo. Porém, vai arrebentar a balança comercial, com o real sobrevalorizado (apesar das bandas) e as importações baratas, criando um déficit que, juntamente com as despesas com fretes, pagamentos de juros, remessas de lucros das empresas estrangeiras etc., vai consumindo as reservas, colocando-nos exatamente na situação do México do final do ano passado. Por outro lado, se abre mão da âncora e faz uma desvalorização em regra do real, encarecendo as importações e estabelecendo cotas e outras barreiras ao ingresso indiscriminado de mercadorias importadas, perde seu principal instrumento de política antiinflacionária, diminui a concorrência externa e retira a ameaça que mantém alguns setores do empresariado sob controle.
Para enfrentar para valer a questão econômica e social, atacando diretamente a pobreza que assola o país, o governo deveria, antes de mais nada, desengavetar a reforma tributária e recolocá-la na ordem do dia; em segundo lugar, articular uma política negociada de preços, salários e tarifas públicas que liberasse a âncora cambial; em terceiro lugar, definir uma política industrial para estimular a produção, que possa orientar a abertura comercial, estabelecendo cotas onde forem necessárias, de modo a definir um horizonte estável para os investidores; e, finalmente, fomentar uma política de emprego, dando atenção especial à reforma agrária, que pode reter o homem no campo, e às micro e pequenas empresas, as grandes geradoras de emprego no país.
Sem sombra de dúvidas, do ponto de vista de Fernando Henrique Cardoso e de sua equipe de colaboradores mais próximos, o Real deve ser comemorado como um sucesso, porque abriu-lhes as portas do Palácio do Planalto. Mas não basta ganhar as eleições e usufruir das benesses do poder. É preciso, também, saber governar e cumprir as promessas de campanha, que serão cobradas pela população mais cedo ou mais tarde.

LUÍS INÁCIO LULA DA SILVA, 49, é presidente nacional do Partido dos Trabalhadores.

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