São Paulo, domingo, 2 de julho de 1995
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Brecht sem comícios nem dogmas

FERNANDO PEIXOTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Brecht sem comícios nem dogmas
Brecht chegou ao Brasil, em São Paulo, em 1945: naquele ano, Walter Casamayer e Henrique Bartelli dirigiram "Terror e Miséria do Terceiro Reich", que estreou no Salão de Festas de uma associação paulista, a Apisp.
Segundo as informações que encontrei no Brasil-Archiv, da hoje inexistente República Democrática Alemã, o país socialista que ele escolheu para viver e trabalhar depois do exílio -iniciado em 1933, provocado pelas perseguições nazistas-, antes desta data, Brecht só havia tido uma peça encenada na América Latina: em 1943, havia sido montada no México uma versão de "A Ópera de Três Vinténs", estreada em Berlim em 1928.
Brecht nos chegou, portanto, como escritor antifascista, vigorosa denúncia da sutil penetração do nazismo no cotidiano da sociedade. E o Brasil está presente em muitos de seus escritos: em poemas e canções que mencionam os nossos charutos, no projeto do filme "Safety First" que chegou a realizar (mas foi filmado com o título "Die Rache des Kapitans Mitchell" -A Vingança do Capitão Mitchell-, na ex-RDA, nos anos 80), nas referências à queima de café em Santos no final do filme "Kühle Wampe" (1931/32), realizado por Slatan Dudow (com roteiro de Brecht) etc.
E, em 1955, um ano antes de sua morte, o diretor brasileiro Alberto Cavalcanti realizou em Viena uma versão cinematográfica da peça "O Senhor Puntila e Seu Criado Matti".
Mas, como companheiro de trabalho, Brecht chega ao teatro brasileiro nos anos 60, influenciando e despertando fascínio e estímulo em alguns dos mais expressivos grupos da época, sobretudo no Teatro de Arena de São Paulo, no Teatro Oficina e no Centro Popular de Cultura da UNE (União Nacional dos Estudantes).
A um teatro com tendência política, inicialmente bastante influenciado por Piscator, superficialmente compreendido enquanto estímulo apenas ao sectarismo e à simplificação ideológica, Brecht chega oportunamente como intervenção aberta e instigante. Introduzindo o valioso conceito de teatro dialético, ajudando a construção de um teatro participante, polêmico, mas não instrumentalizando a criação estética e, sim, provocando uma necessária reflexão transformadora e aprofundada na relação palco/platéia. Foi a influência significativa tanto no terreno da encenação quanto no da dramaturgia.
E começaram as "peregrinações ao santuário": atores e encenadores brasileiros visitaram o Berliner Ensemble, na ex-Berlim Oriental. E trouxeram elementos e conhecimentos mais concretos para aprofundar a investigação de uma linguagem cênica inventiva e criativa, capaz de penetrar com vigor na realidade cotidiana, denunciando, com humor e teatralidade, sem a pretensão do dogmatismo e do comício, tudo aquilo que o hábito nos impede de enxergar.
Esta influência não se limitou à encenação de peças de Brecht: foram muitos os seus textos apresentados em diferentes versões e em diferentes regiões do país. Igualmente expressiva é a presença, às vezes transformada e reinventada, de suas teorias e de seu pensamento, na montagem de outros autores e em textos nacionais que surgem trilhando caminhos diversificados de temática e linguagem.
Em 1976, surge no país a primeira tentativa de publicação do teatro completo de Brecht, na editora Civilização Brasileira, graças a Ênio Silveira, com a coordenação de Geir Campos. Foram publicados apenas seis volumes. Interrompida a coleção, dez anos depois, em 1986, a idéia é retomada, graças ao esforço do alemão Wolfgang Bader, então residente no Brasil, e à permanente inquietação cultural do editor Fernando Gasparian: Bader me convida para dirigir com ele a publicação do teatro completo de Brecht em 12 volumes, na editora Paz e Terra. Depois de algum tempo, ele regressa à Alemanha e a coordenação fica comigo e com Christine Roehrig.
Aproxima-se agora o dia 14 de agosto, que marcará os 39 anos da morte de Brecht. Para alguns, numa postura apressada ou ingênua, Brecht estaria hoje superado pelo que classificam de avanços da dramaturgia e do espetáculo contemporâneos, pelos defensores de técnicas ou processos de trabalho que deliberadamente buscam ignorar o homem em sua dimensão social, limitando-se a penetrar, de forma formalista e vazia, num universo que, afinal, resulta abstrato e inútil. E Brecht estaria também superado por seu pensamento político, pois enterram o marxismo com a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética.
É evidente que Brecht não é um deus ou uma personalidade fora da dimensão histórica, destinada a pairar acima do bem e do mal, a permanecer para sempre como modelo ou estímulo. Mas, assim como, do ponto de vista político, os males que ele denunciou em suas obras continuam não apenas atuais como até ampliados e ameaçadores, a verdade é que o significado de sua estrutura estática, valores e processos que investigou e desenvolveu, continuam, apesar das novas concepções de teatro contemporâneo, como estímulos válidos e expressivos.
O teatro mundial trilhou novos caminhos, e surgiram novas propostas cênicas fascinantes, entre elas, por exemplo, as técnicas de Grotowski e o teatro antropológico de Eugenio Barba. Mas isso nos obriga apenas a rever o pensamento de Brecht, assumindo diante dele, de forma justamente "brechtiana", uma postura crítica permanente, capaz de integrá-lo em nossa realidade atual.
Mais que nunca, precisamos hoje de sua lucidez e de sua provocação, de seu sentido de invenção e transgressão, de sua postura de permanente questionamento do cotidiano e da linguagem artística. O essencial é ter Brecht ao nosso lado como um companheiro de trabalho: não a voz da verdade, mas a presença daquele que contesta e questiona, a quem devemos também contestar e questionar.
Basta pensar um instante no cotidiano brasileiro de hoje, na postura de nossas personalidades políticas, na corrupção e na procura de uma nova forma de organizar a resistência popular, assim como na urgente necessidade de transformação socioeconômica, que Brecht surge como presença irrecusável. No final do ano passado, num encontro internacional promovido pelo Instituto Goethe, em Porto Alegre, sobre o tema "Brecht Hoje", foi unânime e calorosa a voz dos representantes do teatro de diversos países latino-americanos: Brecht é necessário hoje.

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