São Paulo, domingo, 2 de julho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Fragmentos completos de um teatro

CHRISTINE ROEHRIG
ESPECIAL PARA A FOLHA

Brecht semeou, em tudo que criou, idéias e sentimentos destinados a uma colheita tardia. Ele próprio considerava que cada obra possui vida própria e está destinada ao crescimento e à evolução, sujeita a modificações a cada nova leitura. Sua obra baseia-se nessa premissa, de forma que o futuro (será agora o futuro?) é que irá possibilitar uma visão de toda sua abrangência e complexidade.
Tudo era para ele provisório, em construção. Suas peças publicadas e muitas vezes encenadas ainda estavam longe de estar prontas, e as peças de que mais gostava, como "Santa Joana dos Matadouros", "A Alma Boa de Setsuan" ou "Círculo de Giz Caucasiano", eram consideradas por ele como fragmentos.
Apreciava menos o trabalho acabado do que o processo de criação. Desenvolveu um método experimental e mutante, imprimindo uma característica dinâmica ao seu trabalho, forçando o "destinatário" a prosseguir, provocando nele discórdia, dúvida ou aceitação.
Organizar Brecht em uma coleção está longe de ser uma tarefa simples. Ao contrário da organização da edição original da editora alemã Suhrkamp, que apresenta as obras de Brecht segundo diferentes gêneros aos quais pertencem, optamos pela ordem cronológica, apresentando-as na sequência em que foram escritas. Só os fragmentos ficaram fora desta ordem.
As traduções seguiram com extrema fidelidade os originais e não se fez nenhuma tentativa de adaptar ou nacionalizar o texto, mantendo, na maioria das vezes, até mesmo os nomes alemães na forma original. A metodologia permite uma visão histórica do teatro de Brecht e uma interpretação do autor através de sua obra e não através de classificações teóricas preestabelecidas.
Também o trabalho coletivo, sempre sugerido pelo autor, pontuou a nossa edição. As peças tiveram uma gama eclética de tradutores, com formação teórica diversa. Especialistas em Brecht, intelectuais, professores universitários e leigos dedicaram-se a essa missão. O rigor e a fidelidade foram os pontos em comum. Brecht com certeza teria apreciado essa edição.
Como organizadora da edição do "Teatro Completo", em 12 volumes, e não teórica, aprendi na carne, ou melhor, tornei-me parte da dialética, do efeito distanciamento, da didática, do humor, do provisório, do político, da polêmica, do experimental. Tornei-me amiga de Brecht. O leitor terá a mesma oportunidade.
Em 1987, um ano depois de publicarmos o primeiro volume, baseado na primeira edição da obra completa em 20 volumes pela Suhrkamp, surgia na Alemanha, pela mesma editora, o primeiro volume da edição da obra completa comentada em 30 volumes, trabalho conjunto entre as duas Alemanhas, mais precisamente a ex-Berlim Oriental e Frankfurt, que reunia em uma coleção o acervo de ambos os lados.
A edição em 30 volumes divide a obra de Brecht em peças (dez volumes), poesia (cinco volumes), prosa (cinco volumes), escritos (cinco volumes), diários (dois volumes), cartas (dois volumes) e registros (um volume). Algumas peças haviam sido reescritas pelo autor e outras não constavam na edição original (1).
Deveríamos seguir a nova proposta simultaneamente? Escrevemos para o senhor Klaus Detlev Müller, organizador do teatro dessa nova edição, questionando a validade de publicação do que para eles estava sendo agora modificado. O senhor Müller aconselhou-nos a prosseguir com o que havíamos iniciado. Afinal, a Alemanha estava apenas iniciando essa nova empreitada. Uma coisa depois da outra, diria um bom alemão.
Se Brecht diria o mesmo, não sabemos. Mas este fato só vem comprovar a dificuldade de publicá-lo. E se Brecht um dia escreveu: "Eu não necessito de epitáfio, mas se vocês sentirem necessidade de um para mim, desejaria que fosse `ele teve razão, nós o percebemos" . Depois corrigiu, escrevendo: "Ele fez sugestões, nós as aceitamos -uma inscrição dessas deixaria qualquer um honrado".
Seguindo o rabo do cometa, deixo aqui um registro aos meus parentes e amigos: "Eu não necessito de epitáfio, mas se vocês necessitarem de algum para mim, `aqui jaz quem tentou editar Brecht -com uma inscrição dessas qualquer um se sentiria honrado".

(1) Edição comentada: ``Obra Completa de Bertolt Brecht", em 30 volumes (Berlim e Frankfurt) - Peças (1988-1992) - ``Grosse kommentirerte Berliner und Frankfurter Ausgabe" - Suhrkamp

Texto Anterior: Brecht sem comícios nem dogmas
Próximo Texto: O tradutor, o relojoeiro e o artista
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.