São Paulo, domingo, 2 de julho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O tradutor, o relojoeiro e o artista

MARCOS RENAUX
ESPECIAL PARA A FOLHA

Traduzir Brecht, como a meu ver traduzir um texto dramático de qualquer outro autor, exige que o tradutor, para ter uma razoável chance de sucesso em sua tarefa, goste do texto que se propõe a traduzir. É preciso sentir alguma afinidade, ter algum gosto, uma atração por ele. É um trabalho por vezes tão infernal, tão distante da beleza que o tradutor acredita existir no original e que quer, a todo custo, atingir na obra traduzida, que, se não for assim, não vale a pena o esforço. Apesar de você estar "produzindo", ou tentando reproduzir uma obra de arte, é preciso ser, antes de mais nada, um engenheiro, um relojoeiro no ofício de fazer encaixarem-se as peças.
É necessário procurar encontrar em português, a cada palavra, aquela que tenha o maior número possível de "paralelismos", aquela que, em seus eventuais segundo ou terceiro sentidos, reflita igualmente os eventuais outros sentidos da palavra de origem. Claro que muitas vezes isto é impossível; pode ocorrer também que, uma vez alcançado este propósito, a fala fique, justamente em razão de um excesso de literalidade, incompreensível ou pelo menos esquisita, feia em português.
Sim, porque há vezes em que o tradutor se sente iluminado, parece que os santos baixaram com o firme propósito de fazer dele um sujeito feliz, realizado com a solução que encontrou para um certo desafio. E um momento como este, entre tantos outros de enfrentamento de problemas aparentemente insolúveis, de frustração e de vontade de largar a tarefa para outro, é capaz de renovar a vontade, a alegria mesmo de traduzir, por mais um bom tempo. Ouvir de alguém do público, que assiste a uma peça, que você traduziu, algo como: "Mas é traduzida? Parece que foi escrita em português", descontada a eventual demagogia, é alentador.
Traduzir do alemão é, a meu ver, mais complicado que do inglês, mesmo para quem, como eu, teve contato antes com aquela língua que com esta. Não é impossível que seja uma limitação meramente pessoal, mas me parece que a língua alemã é tão mais distante, tão mais cheia de particularidades inexistentes em português, que só isso já é motivo para fazer com que uma primeira versão de uma tradução do alemão para o português pareça mais "alienígena" que uma do inglês. Qualquer tradução que eu faça de um texto dramático alemão requer mais revisões que uma feita a partir de texto inglês ou americano, necessita ser mais "escovada", como diria o intelectual e também tradutor de Brecht, Roberto Schwarz.
Estou convencido também de que uma tradução tem mais chances de ser boa se feita por mais de uma pessoa. A objeção que não raro se faz de que ela assim perde em personalidade não procede, já que é obrigação do tradutor manter-se fiel ao autor, no limite repetir seu erro, se em algum lugar ele errou. Traduzir em duplas, como tenho feito nas traduções de Brecht, Müller, Büchner, Shepard, Pinter, Spendler ou quem quer que seja, parece-me ser uma garantia a mais para o leitor e para o encenador de que a tradução possivelmente está mais próxima do texto de partida que se tivesse sido feita apenas por mim ou por outro. Além disso, é muito mais divertido: dá-se boas risadas, aparecem propostas muitas vezes hilariantes para a solução de determinados problemas, e, quando um está com vontade de largar tudo, o outro segura a peteca. Traduzir, como o leitor pode muito bem supor, tem um potencial de aridez tão enorme que, imagino, só o trabalho em duplas pode reduzir.
Cada dupla, e não são poucas as existentes, tem sua própria dinâmica, seu método próprio de trabalho. Mas todas, pelo que sei, passam pelo momento da leitura, da revisão final (que podem ser muitas) e em voz alta do texto traduzido, e este é, sem dúvida, o momento mais divertido, mas também o mais determinante da qualidade do trabalho. É ali que se ouve o que foi escrito, é ali que se simula o que pode ocorrer no palco, é ali que eventualmente se descobrem as grandes "batatadas", como denomina um de meus companheiros os grandes erros, aqueles que fariam corar qualquer tradutor. Procurar livrar-se destas "batatadas" é a grande angústia, talvez maior que aquela representada pela dúvida de saber se seu texto se aproxima artisticamente do original ou não. Mesmo porque esta avaliação não será você quem fará, e evitar o erro é uma obrigação, não uma liberalidade.
Para a coletânea "Teatro Completo de Bertolt Brecht", que chega agora a seu 12º e último volume, traduzi, em parceria com a editora e tradutora Christine Roehrig, três peças. Para o volume 5 a peça "Os Cabeças Redondas e os Cabeças Pontudas", e para o volume 7 "Dansen" e "Quanto Custa o Ferro". As duas últimas são mais esquetes do que propriamente peças. "Cabeças, das três a que mais gosto", é inspirada em "Medida por Medida", de Shakespeare, e nela Brecht queria, na versão inicial, escrita ainda na Alemanha, denunciar o caráter classista, parcial da justiça.
Já no exílio dinamarquês, em sua nova versão, o objetivo da peça era desmascarar, denunciar aquele que dizia haver superioridade de uma raça: num país destruído pelo excesso de produção de grãos, em que seu preço não pagava sequer o custo do transporte, os latifundiários, ameaçados pela força camponesa dos arrendatários de suas terras, reunidos em um grupo rebelde denominado "A Foice", forçam o vice-rei, ele mesmo um latifundiário, a encontrar uma saída para a crise econômica em que o país se encontra.
O ministro Missena procura uma saída que mascare o conflito de classes e sugere o nome de Ângelo Iberin, inventor de uma teoria segundo a qual a sociedade daquele país se dividia em pessoas de cabeças redondas, os "Txuxes", bons, virtuosos e nobres, preocupados com o bem-comum, e as pessoas de cabeças pontudas, os "Txixes", materialistas, astutos, frios e traidores. Estes têm de ser eliminados, não importa se ricos ou pobres. Porém, como é de se supor, em se tratando do autor que finalmente entendeu suas peças depois de ter lido "O Capital", como declarou Brecht, é claro que quem é ``txuxe", mas arrendatário e pobre, se dá mal, enquanto que quem é ``txixe", mas latifundiário e rico, se dá bem, fazendo jus ao subtítulo da peça, "Rico Se Dá Com Rico". No fim das contas esta dupla denúncia, do capital e do racismo, acaba sobrecarregando um pouco a trama, confundindo o leitor ou espectador.
Frederic Ewen, em sua bela biografia de Brecht ("Brecht - Sua Vida, Sua Arte, Seu Tempo", Ed. Globo, tradução de Lya Luft) relata que, na encenação em Copenhague, a peça despertou sentimentos confusos e um certo tumulto: "Além da estranheza do `estilo épico', o próprio conteúdo levava a mal-entendidos. Pois Brecht sugeria um embate entre capitalistas arianos e não arianos em apoio ao hitlerismo, numa época em que as leis de Nuremberg já faziam prever o que estava reservado aos judeus, pobres ou ricos". Já as outras duas peças ou esquetes tratam da anexação da Áustria e da Tchecoslováquia pela Alemanha de Hitler. Como ocorre na maioria de suas peças, denúncias de violências políticas e exposições cruas de feridas sociais são apresentadas com uma força poética, com uma veia satírica tal, que faz com que traduzir, ler ou simplesmente assistir Brecht seja sempre um prazer renovado.

Texto Anterior: Fragmentos completos de um teatro
Próximo Texto: Sob a sombra da suspeita
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.