São Paulo, quarta-feira, de dezembro de
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Biografia tenta demolir mito do dramaturgo

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

``Quem escreveu a `Ópera de Três Vinténs'? No livro está o nome de Bertolt Brecht. Redigiu ele o texto? E a `Vida de Galileu' várias vezes corrigida -Quem a reescreveu tantas vezes? Quanto ganharam de direitos as suas autoras?"

Esta paráfrase de um dos melhores poemas que Brecht escreveu -``Perguntas de Um Trabalhador Que Lê" (``Poemas 1913-1956")- poderia ser a epígrafe do livro do John Fuegi, ``The Life and Lies of Bertolt Brecht", publicado nos EUA com o título de ``Brecht and Company". Sua tese é simples: quase nada do que fez a fama e a fortuna do dramaturgo, poeta e prosador alemão mais célebre deste século é realmente de sua autoria.
A política de Brecht sempre foi conhecida: afinal, ele era a principal estrela cultural do regime comunista instalado pelos russos na República Democrática Alemã. Suas peças e declarações, poemas e idéias foram usados, com seu apoio e conivência, para justificar uma tirania incompetente em tudo, exceto na opressão. E essa tirania lhe foi grata e o recompensou em vida -dando-lhe, entre outras coisas, um teatro completo, o Berliner Ensemble.
Como é que fica Brecht depois destas novas e devastadoras revelações? Segundo Fuegi, o alemão era um misógino empedernido, com pendores homossexuais, que atraía mulheres talentosas e as explorava sem piedade, fazendo-as escrever inteiramente, ou em boa parte, as peças que ele em seguida assinava. Estas não apenas o celebrizaram, como lhe renderam proventos consideráveis que ele jamais compartilhou com suas ``ajudantes". Mesmo quando a fama era compartilhada, o dinheiro não era; no caso da ``Ópera de Três Vinténs", cujo sucesso decorre de forma nada desprezível da música de Kurt Weill, Brecht se beneficiou de um contrato leonino que privava o compositor de quase tudo a que teria direito.
No caso específico da ``Ópera", nunca foi segredo que ela era um adaptação livre -plágio, diriam alguns- da peça setecentista do inglês John Gay. Só que, ao que parece, nessa época Brecht não dominava o inglês. Como ``adaptou" John Gay? Com a ajuda de sua amante Elizabeth Hauptmann, que conhecia tão bem a língua que escreveu a letra da célebre ``Alabama Song". Quanto do texto alemão da ``Ópera" pertence a ela? Pelo menos 3/4, segundo Fuegi. Quanto ela ganhou por isso? Melhor não comentar.
As mesmas perguntas são cabíveis, de acordo com Fuegi, no caso das peças de meados dos anos 20 em diante, de sua prosa de ficção, de sua teoria (o ``teatro épico" seria uma ``adaptação livre" do conceito de ``estranhamento" elaborado pelos formalistas russos, particularmente por Victor Shklóvski) e até mesmo -mas é raro- de alguns dentre seus poemas, brilhantes ``traduções livres" de textos ingleses.
Resumindo, Fuegi argumenta que, sob o nome de Brecht, oculta-se uma verdadeira companhia de autores, ou melhor, de autoras que faziam o grosso do trabalho. Além de Elizabeth Hauptmann, Grete Steffin e Ruth Berlau protagonizaram este verdadeiro ``Brecht Ensemble", sendo elas as verdadeiras autoras de clássicos como ``A Vida de Galileu", ``O Círculo de Giz Caucasiano", ``Mãe Coragem" etc.
O livro, porém, é problemático. Uma argumentação simples, que diz respeito a fatos (comprováveis ou não), arrasta-se por mais de 700 páginas entremeadas de juízos de valor raramente apoiados numa análise adequada dos textos. O âmago da questão, ou seja, a autoria das peças atribuídas a Brecht, é mais insinuado obliquamente do que efetivamente demonstrado. Fuegi procura convencer através da repetição quase obsessiva.
Trata-se, em suma, de uma obra destinada a ``queimar" um autor. Ela o consegue? Sim e não. Seu argumento central -o das autorias alheias- é plausível no quadro do que já foi devidamente estabelecido a respeito de Brecht. Mas no que isso muda o conceito em que o alemão é tido? Em pouco, pois a suspeita afeta principalmente seu teatro, cuja reputação já andava em quarto minguante. É cada vez menor o número de pessoas dispostas a aguentar uma peça didática que pretenda incutir-lhe uma doutrina relegada atualmente ao lixo da história.
O que Fuegi diz a respeito da pessoa Brecht tampouco muda muita coisa. Sua imagem de oportunista e misógino, de individualista no fundo apolítico que usou e se deixou usar pelos comunistas, de ``bon vivant" travestido de idealista etc. etc. etc. não só era mais do que conhecida como também lhe empresta um certo charme. É, em todo caso, menos repelente do que a imagem de militante bem-comportado.
E sua poesia? Ela sai praticamente incólume de ``The Life and Lies". Não é, porém, necessário atravessar esse calhamaço para se chegar a tal constatação. Martin Esslin, num livro pioneiro -e infinitamente superior- ``Brecht: A Choice of Evils", já havia concluído o mesmo em 1959.
Escritores tão diferentes quanto Elias Canetti e W.H. Auden também afirmaram, muito antes, que o verdadeiro Brecht, o que conta, é o poeta. Sua carreira, no entanto, é exemplar do emaranhamento equívoco entre cultura e política no presente século e só resta esperar por um livro que discuta com rigor as dúvidas levantadas, mas não resolvidas, por Fuegi.

BRECHT AND COMPANY
DIÁRIOS DE BRECHT
Reunindo textos de 1920 a 1922 e anotações autobiográficas de 1920 a 1954, acaba de sair no Brasil pela L&PM

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