São Paulo, domingo, 2 de julho de 1995
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Arafat diz ter esperança na independência

DA "PARADE"

Antes de partir, entrego a Iasser Arafat um bilhete enviado por um maître palestino em Jerusalém.
Arafat coloca seus óculos de lente grossa para ler a cartinha, em que o maître se dirige a ele com o tratamento carinhoso de "al-khitar", ou ``velho".
"A nosso velho presidente: Estamos esperando sua chegada até nós. Com profundo amor e respeito, Mahmoud Mansour, Jerusalém".
``Ele mandou dizer ao senhor que há milhões de outros que têm o mesmo sentimento".
Hoje existem cerca de seis milhões de palestinos no mundo. Cerca de quatro milhões vivem em Gaza, na Cisjordânia, em Israel e na Jordânia. Os outros estão espalhados pelo mundo, a maioria na Síria, no Líbano, no Egito e nos Estados Unidos.
Para milhões deles, a imagem de Arafat traz à mente visões de seus antigos lares, bosques de laranjeiras, campos de trigo e memórias de pessoas queridas que tombaram na luta pela reconquista de sua terra natal.
Arafat sorri devagar, como se ouvisse o som de uma música antiga. ``Obrigado", diz ele baixinho. ``Obrigado."
Foi um pequeno vislumbre do homem que se oculta por trás do uniforme militar e do lenço árabe na cabeça. O presidente da OLP mantém sua vida particular escondida, equacionando sigilo com sobrevivência.
Mas suas mulheres levantam o véu um pouquinho, revelando qualidades que as fascinam -e também outros traços menos atraentes. A atual é Suha Tauil (leia texto abaixo).
Umm Nasser, que tem quase 70 anos e é uma entre as pelo menos cinco outras mulheres que já passaram pela vida de Arafat antes de Suha, disse que Abu Ammar (nome de guerra de Arafat) é ``um homem muito bom, muito carinhoso e sensível". Ela acrescenta: ``Ele ama as pessoas, especialmente as crianças".
Esse amor parece ter incluído a instilação de ódio.
``Quando eu percebia que ele estava nervoso e cansado", conta Umm, ``eu procurava um garoto palestino e dizia a ele: `Vá falar com Abu Ammar. Ele quer te dar um fuzil Kalachnikov para combater os judeus'. O menino ia pegar o fuzil e Abu Ammar esquecia as preocupações, sorria e beijava-o, dizendo: "Olhe para essas crianças. Elas são nossa esperança".
Mas o líder da OLP não parecia ter consciência do efeito que suas palavras teriam em Israel, onde bombas do Hamas (Movimento de Resistência Islâmico) e da Jihad mataram 67 pessoas e feriram 239 no último ano, e onde Jihad significa "guerra santa para os ouvidos israelenses.
"Esses discursos são um desastre", observou Eyad Sarraj, principal psiquiatra de Gaza e diretor de seu programa comunitário de saúde mental.
"Arafat não percebe que neste mundo não se pode manter conversações secretas com alguém e depois declarar outra coisa em público. Não se pode falar sobre paz e depois incitar violência, seja da maneira que for".
Pouco depois disso, Arafat me convidou para uma ceia. Ela aconteceu num momento crítico. Yithzak Rabin, agora perdendo lugar nas sondagens de intenção de votos, estava falando em separar árabes de judeus por meio de cercas de arame farpado, sensores eletrônicos e cães policiais.
Seu gabinete estava rachado e as colônias se expandindo, apesar de suas promessas. Unidades do Exército se batiam com palestinos irados que viam sua terra prometida ser retalhada por estradas de segurança, isolando-os em bolsões de estagnação.
Em Gaza e na Cisjordânia, a fronteira ainda estava fechada, e dois milhões de palestinos chegaram ao limite do que podiam suportar.
Falava-se em uma nova Intifada, ou sublevação contra os israelenses -desta vez com bombas em lugar de pedras.
A liderança de Arafat em Gaza e seu controle sobre a OLP estavam mais ameaçados do que nunca na história.
A sala de espera estava apinhada de banqueiros, investidores e agentes do mundo inteiro. O boicote aos árabes chegava ao fim, as portas do Oriente Médio se abriam, o Banco Mundial estava à mão para tapar os buracos, fundos das nações doadoras voltavam a fluir -e todo o mundo queria abocanhar uma fatia do bolo.
Esperando por Arafat, tentei imaginar como ele, aos 65 anos, conseguia aguentar essa rotina de 16 horas diárias de trabalho.
Ele chega ao escritório por volta das 10h, almoça às 15h e depois tira uma soneca curta numa salinha ao lado. Janta tarde e depois trabalha até as 3h, quando seu carro blindado o leva para uma de suas casas seguras.
Mas, mesmo ali, ainda recebe ligações urgentes. Só vai dormir às 4h -usando training de moletom.
Arafat não fuma e evita consumir carne, café e álcool. Ele toma chá morno com mel, porque acha que o calor destrói as vitaminas. Ao nosso lado na mesa estão cinco assessores, um dos quais é Maruan Kanafani.
Sendo meu anfitrião, Arafat levantou-se para me servir de sopa. Depois me passou pãezinhos com sementes de papoula. "De Jerusalém", explicou.
"Não há tempo suficiente, disse Arafat, quando finalmente nos encontramos, à 1h30. "Israel levou 27 anos para destruir a infra-estrutura de Gaza. Não podemos erguer tudo outra vez da noite para o dia... mas podemos tentar!"
Ele se sentou ao meu lado, e percebi que a pele de seus braços está perdendo a pigmentação, ficando branca. O resultado é um efeito estranho: parece que suas mãos pertencem a outra pessoa.
O que ele poderia fazer para impedir que os terroristas acabem com qualquer chance de paz? "Estamos fazendo progressos."
Como ele iria revelar mais tarde, ambas as partes, em conversações secretas, haviam concordado que as eleições palestinas tinham de ser realizadas no prazo mais breve possível, antes da ampliação da autonomia à Cisjordânia.
Para garantir isso e salvar o processo de paz, os israelenses iriam retirar suas forças de segurança de seis das principais áreas urbanas.
Arafat, por sua vez, procuraria chegar a um acordo com o Hamas e a Jihad Islâmica, para que interrompessem os ataques, dessem início ao julgamento dos extremistas por tribunais militares e fizessem buscas e apreensão de armas.
Isso deixaria cada lado responsável por sua própria área, com a necessidade de elos mais próximos para combater perigos comuns.
Entre esses figurava a existência de uma máfia israelense-palestina usando embarcações, túneis e até mesmo estradas militares para cruzar a fronteira com produtos do mercado negro ou fornecer passagem para quem pudesse pagar o preço cobrado.
E alguns colaboradores palestinos, protegidos por Israel no povoado fronteiriço de Dahaniya, organizaram travessias da fronteira na esperança de "limparem sua ficha", que os identificava como traidores.
Arafat acreditava que a aldeia dos colaboradores havia sido usada para o último ataque suicida duplo.
Um dos terroristas, Anuar Sukart, tinha uma ficha que o teria impedido de passar a fronteira. Um mês mais tarde, um caminhão com explosivos, descoberto no sul de Israel antes de explodir, foi supostamente infiltrado no país da mesma maneira.
Mostrei a Arafat uma foto de Sukart, que me havia sido dada na casa dele. Era um belo rapaz de 23 anos, de pé diante de uma cachoeira. Ele tocou o rosto da foto com um dedo.
"Eles distorcem nossa religião para isso, levando esses rapazes a caírem na tentação de se matar", disse Arafat.
Será que Arafat antevê um dia em que crianças judias e árabes possam brincar lado a lado, livres das sementes do ódio?
Ele aponta para um quadro dos Dez Mandamentos -dez tabuletas de ouro em um quadro emoldurado na parede. "Eu sempre quis um Estado unificado de nacionalidades distintas, como na Suíça."
Um assessor tira uma menorá (candelabro ritual do judaísmo) de prata de um armário e o coloca à nossa frente.
Arafat aponta para um grande quadro na parede retratando a mesquita de Omar, em Jerusalém -o terceiro local mais sagrado do islamismo.
"Você está vendo, ao lado da mesquita, o Santo Sepulcro dos cristãos?... Venha, vou te mostrar."
Usando uma caneta vermelha, fez um desenho sequencial das três grandes religiões da Terra Santa em sua ordem histórica -a menorá hebraica convertendo-se em cruz cristã, seguida pelo crescente islâmico (veja quadro abaixo).
"Este é o emblema de nosso movimento Fatah, na OLP", explicou Arafat. "Você vê como as religiões devem coexistir juntas?"
"Temos um ancestral comum: Abraão", disse ele, referindo-se à crença na descendência árabe do primeiro filho de Abraão, Ismael, que Abraão teve com Hagar, a criada egípcia de sua mulher, Sara.
Observei que, após o nascimento de Isaac, o primeiro filho legítimo de Abraão, Ismael e sua mãe haviam sido expulsos, enviados ao deserto. Assim, os ancestrais de Arafat já haviam começado a vida como refugiados.
"Nada disso", respondeu ele, achando graça. "Abraão também foi um refugiado. Saiu de Ur em direção a Canaã e ao Egito. Nossos dois lados começaram assim, mas para nós essa caminhada ainda não chegou ao fim."
Outra coisa que ainda não chegou ao fim são as tentativas de assassinato que ele sofre. Arafat já foi alvo de 40 atentados até agora.
"Sharon admite que tentou me matar 13 vezes", disse ele, sobre o general israelense Ariel Sharon.
Uma vez, fazia cooper quando viu seu apartamento explodir. Em outra ocasião, havia saído de sua casa no meio da noite -meia hora antes de ela ser invadida por agentes israelenses.
"Consigo farejar o perigo, como um cão", disse ele. "Não me peça para explicar como".
A ocasião em que chegou mais perto da morte foi quando seu avião caiu no deserto líbio, em abril de 1992. Quando o avião começou a cair, Arafat começou a rezar. Três membros da tripulação morreram, mas Arafat arrastou-se dos escombros do avião, vivo. Qual era a oração?
Olhando para o teto, Arafat começou a recitar um trecho de "O Arrependimento, do Alcorão:
"Um mensageiro veio até vós Vindo de vós mesmos. Ele leva a sério Sua situação dolorosa Está ansioso por vocês É compassivo, misericordioso para com os crentes Confio nele, Senhor do trono poderoso."
Arafat acredita que seu destino já foi traçado muito tempo atrás. A bala ou a bomba que tiver seu nome inscrito vai encontrá-lo um dia, não importa onde se esconda ou quanto orar.
Perguntei se ele alguma vez teve alguma premonição, como Martin Luther King, de que não chegaria a ver sua terra prometida.
"Não. Eu vejo a luz no final do túnel. Sou muito otimista. Dêem-nos três a cinco anos e chegaremos lá. Sim, temos muitíssimos problemas, mas estou acostumado com isso."
Perguntei se ele teria uma mensagem a deixar para seu povo, quando sua morte chegasse.
Arafat pensa por um instante, depois diz, com os olhos fechados: "Nunca se esqueçam de acalentar em seus corações nosso sonho de um povo em uma nação. E convivam juntos em paz e liberdade, em nossa terra liberada."

Tradução de Clara Allain

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