São Paulo, domingo, 2 de julho de 1995
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Os azuis de Ticiano

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Descobri antes de De Gaulle que o Brasil não é país sério. Já fui pago para tocar piano num inferninho de Copacabana, frequentado por homens suspeitos e mulheres suspeitíssimas, repertório dos anos 40, ``As Time Goes By", ``It Had To Be You", ``Sleepy Lagoon" -coisas assim. Depois me pagaram para escrever em jornais, revistas e livros -deu para levar a vida. Pelo menos até aqui.
Com esse passado pregresso, nada de admirar que ousasse mais. A meu favor apenas a primeira motivação: comprei um pincel e um tubo de tinta para disfarçar o furo que um prego mal colocado deixou num ladrilho da cozinha.
Depois da lambança que promovi em casa, achei que devia insistir e dei de pintar quadros, inicialmente abstratos, depois mais abstratos ainda -se isso é possível. Comportava-me dentro da decência humana, pintava para mim mesmo, talvez nem isso, até que um amigo mal-intencionado comprou-me uma produção estranhíssima, uns borrões amarelos em cima de estacas cor-de-burro-quando-foge, aliás, uma de minhas cores prediletas, com a qual venho fazendo complicadas experiências.
Guardei o cheque até hoje, sem coragem de descontá-lo. Vale mais como testemunho do que como dinheiro. É o atestado de que em algum momento vali mais do que Van Gogh e Modigliani, que nunca venderam nada enquanto vivos.
Fiz uns 30 quadros, de tamanhos e propostas diferentes, todos com a transparente proposta de não terem proposta alguma. Conheci em Veneza uma sueca que havia 20 anos estudava os azuis de Ticiano. É possível que daqui a dois ou três séculos venha outra sueca estudar meus azuis -que na verdade são quase verdes.
Os artistas da Renascença não tinham a preocupação de ``exprimir-se". Isso foi coisa decadente, de tempos decadentes. Tampouco procuro exprimir-me -estou seguindo Leonardo, Botticelli e Rafael. Posso nada valer, mas estou em excelente companhia.

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