São Paulo, domingo, 2 de julho de 1995
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vestibular para trouxa

MARILENE FELINTO

A educação no Brasil está errada, naturalmente. Com a falência do ensino público de primeiro e segundo graus, o privilégio da educação superior nas universidades públicas fica para os filhos dos ricos, recém-saídos das melhores escolas particulares. Filhos de banqueiros, fazendeiros, políticos, gente graúda, todo tipo de marajá que tem dinheiro de sobra para pagar a escola de suas crias, como fazem, aliás, até que estas terminem o segundo grau.
Mas quando os filhos deles passam no vestibular, a coisa muda. Entramos nós em cena -o chamado povão-, pagando impostos que vão financiar os estudos desses filhinhos de papai, matriculados em cursos de período integral, que tiram o dia vagabundando no campus verdejante da universidade, sujeitos barbados, esticando para além dos limites uma pretensa adolescência.
Na tentativa de corrigir a injustiça flagrante, inventaram agora na Universidade de São Paulo (USP) um cursinho pré-vestibular para negros (supondo-se que todo negro é pobre). Anda-se a discutir se devem ser criadas cotas para negros na universidade. Absurdo. Se tiver de haver cotas, que sejam para pobres, negros, brancos ou mulatos. A questão é sócio-econômica, e não racial.
Há muito tempo o vestibular já devia estar separado, dividido em dois: metade das vagas para ricos, metade para pobres. Pobre disputaria com pobre, rico com rico. Não tiveram as mesmas chances, não podem fazer a mesma prova. Ou que façam a mesma prova, mas disputando em igualdade de condições: alunos de escolas públicas contra alunos de escolas públicas; os outros contra os outros. Alguma dúvida?
A solução a curto prazo é essa. A não ser que se pretenda esperar 50 anos pela reforma do ensino público, pela atualização e revalorização do professor. A resolução é premente, afinal o país é vergonhosamente injusto. O resto é pendência, é a gente do governo repisando na retórica, na sociologia e na economia, ainda à procura de coisas ultrapassadas como a ``realidade brasileira" ou os ``males nacionais" -enquanto publicam teses sobre os japoneses!
Os males nacionais se apresentam todo fim de ano, na cara de angustiados meninos de escolas públicas diante de formulários computadorizados e lápis pretos n.o 2: é a pseudodemocracia do vestibular.
Meninos que passaram a infância domesticados em creches paupérrimas, à base de um insosso leite de soja, sob a tutela de professoras malpagas, mal formadas, mal-humoradas e desinteressadas, sem aprender nada até os 6 anos de idade (só fazem recortar e colar papel), não podem competir com garotos alimentados à base de iogurte, leite A, livros de histórias e computador.
Alguém precisa alertar esses meninos dos surrados bancos de escolas estaduais, que trabalham de dia e estudam de noite, para o fato de que eles serão tratados, na batalha da vida ``adulta", como pessoinhas de classe baixa, sem direito de acesso ao conhecimento, ao progresso técnico-científico, aos bons empregos, aos círculos de poder do país.
O alerta deveria partir das lideranças estudantis: sentados aí, nesses bancos da Fuvest ou qualquer outra USP, vocês estão prestando vestibular para trouxa. Mas a UNE é cosmética, pinta a cara dos estudantes e faz a contestação vazia, mais preocupada com as carteirinhas para meia entrada no cinema.

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