São Paulo, segunda-feira, 3 de julho de 1995
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Deus não joga dados

WALDYR A. RODRIGUES JR.

A resposta da dra. Marilena Chaui (Jornal de Resenhas, 01/05/95) a meu artigo, que critica o seu livro ``Convite à Filosofia", necessita uma tréplica, pois, caso contrário, algum leitor não muito versado na questão em discussão poderá pensar que ela tem alguma razão.
Em primeiro lugar, um parágrafo em sua carta é empregado para responder a uma questão que não discuti na versão publicada de meu artigo. Tal tem a ver com sua afirmação sobre a lei de gravitação universal newtoniana. Certamente, ter discutido coisas que não afirmei em meu artigo deve ter deixado atônito o leitor mais atento. O ponto em questão é que a dra. Chaui afirma que não enunciou a dita lei, mas em seu livro lêem-se (na pág. 21) as seguintes asneiras: ``A lei de gravitação afirma que todo corpo, quando sofre a ação de um outro, produz uma reação igual e contrária, que pode ser calculada usando como elementos do cálculo da massa do corpo afetado, a velocidade e o tempo com que a ação e a reação se deram".
Ora, a primeira parte da sentença é o enunciado da terceira lei do movimento da mecânica newtoniana (MN) e está correta. A lei da gravitação universal submete-se obviamente à terceira lei. O resto do enunciado é falso. Na MN, o tempo entre a ação e a reação é sempre nulo. Assim, nesta teoria, a força de gravitação entre dois corpos ``propaga-se" instantaneamente. Para calcular-se a força de gravitação que um corpo exerce sobre um outro em um dado instante, não é necessário o conhecimento das velocidades dos corpos envolvidos, mas precisamos saber a distância que os separa no instante considerado.
De fato, o enunciado correto da lei da gravitação é: ``O módulo da força atrativa que uma partícula de massa `M' exerce gravitacionalmente sobre uma outra de massa `m', em um dado instante, é proporcional ao produto das massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância que as separa. A direção da força é a da linha reta determinada pelas posições das partículas".
No enunciado apresentado, a palavra ``corpo", que aparecia na sentença da dra. Chaui, foi substituída por ``partícula". Este conceito corresponde a uma idealização, um corpo material pontual. Sem esta idealização, é impossível dar-se um enunciado inteligível para qualquer uma das leis da MN. Entretanto, sobre tal questão, paremos por aqui.
A dra. Chaui diz que, em meu artigo, descartei, de uma só penada, a interpretação de Copenhague da mecânica quântica. Nada mais falso, somente afirmei que o livro de F. Selleri, ``Quantum Physics and Physical Reality", serve de antídoto para aqueles que aceitam aquela interpretação de teoria quântica sem maiores reflexões, em detrimento do realismo (como definido por Selleri).
Comento aqui que a ``interpretação de Copenhague" tem origem na obra do dinamarquês Soren Kierkegaard, que, em sua filosofia, uma mistura de ``dialética qualitativa" com injeções de misticismo, influenciou decididamente Niels Bohr, Werner Heisenberg, entre outros, mas não contaminou Albert Einstein, Erwin Schrõdinger e Louis de Broglie. Este último passou muitos anos infectado, mas felizmente curou-se e dedicou o resto de sua vida desmantelando a interpretação de Copenhague.
Diz ainda a dra. Chaui que, numa penada, não sei se a mesma anterior, descartei ``o problema da conservação ou não de energia, como se a discussão da hipótese ergódica estivesse resolvida, desconsiderando tanto os sistemas não ergódicos (como os trabalhos de Kolmogorov, Arnold, Mozer) quanto a limitação da universalidade dos sistemas ergódicos (como nos trabalhos de Prigogine ou de Sinai), numa conclusão que está longe de haver sido concluída".
O parágrafo acima ilustra a pseudocultura a que me referi no meu artigo de 01/05/95. De fato, a dra. Chaui não entendeu que os trabalhos de Kolmogorov, Arnold e Mozer (KAM) mostram a existência, em princípio, de sistemas dinâmicos não ergódicos. Para esses sistemas, pode ocorrer uma violação da chamada ``segunda lei da termodinâmica", que estabelece a quantidade máxima de calor que pode ser convertida em trabalho por um dado sistema físico. Obviamente, os resultados dos teoremas KAM não implicam uma violação da primeira lei da termodinâmica, que afirma a conservação da energia. Também nenhum trabalho de Prigogine ou de Sinai implica qualquer violação da lei de conservação da energia.
Ademais, meu artigo deixa claro que apenas afirmei que, contrariamente ao que diz a dra. Chaui em seu livro, não existe violação da lei da conservação da energia na mecânica quântica. Por outro lado, deixei claro que, na relatividade geral, existem modelos onde a dita lei é violada, melhor ainda, não pode sequer ser formulada.
A dra. Chaui acusa-me de confundir determinismo dezenovista e determinação da necessidade dos fenômenos. Posso garantir que jamais fiz tal confusão. O que fica claro é que a dra. Chaui, em sua resposta ao meu artigo, tenta, contrariamente ao que faz em seu livro, induzir o leitor a pensar que existe uma determinação da necessidade dos fenômenos na mecânica quântica. Isso simplesmente mostra que ela nunca entendeu esta teoria, cuja interpretação de Copenhague afirma a existência de fenômenos sem causas (o decaimento de um átomo radiativo, por exemplo). É contra tal interpretação da teoria quântica que Einstein afirmou que ``Deus não joga dados". Einstein foi o campeão do determinismo.
Devo dizer que concordo com a Dra. Chaui quando ela diz: ``Somente uma mula imaginaria que os cientistas se puseram a discutir tais problemas sem motivo algum...". Infelizmente, alguns indivíduos despreparados teimam em participar da discussão e, pior ainda, escrevem sobre estes temas.
A dra. Chaui termina seu artigo citando Von Neumann, mas duvido que ela possa ter entendido o seu ``Mathematical Foundations of Quantum Mechanics" e sua argumentação, que o leva a propor que o problema da medida naquela teoria somente se resolve quando, finalmente, se diz a respeito de um dado fenômeno observado: ``Tal foi percebido pelo observador".
É claro que a relação entre o observador e o observado é um dos problemas básicos da teoria do conhecimento. Aqui, ele só veio à tona porque a dra. Chaui afirmou em seu livro que a Teoria da Relatividade implica que ``não há como distinguir entre observador e observado". Uma asneira sem limites.

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