São Paulo, sexta-feira, 7 de julho de 1995
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Alienação e animalização se confundem

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Não há loja de móveis um pouco melhorzinha que não ponha logo um cartaz dizendo "Furniture". Pizzarias espertas não anunciam entrega a domicílio, mas um serviço de "delivery". Há propagandas na TV feitas totalmente em inglês, sem tradução. Loja de bicicletas é coisa impensável: tem de ser "bike shop". Mesmo cantinas italianas proclamam sua especialidade em "pizza and pasta".
Seria tolice reclamar contra esse estado de coisas, que nada tem de novo aliás. E "entrega a domicílio" é bem mais feio e complicado do que "delivery", por exemplo; "car wash" funciona melhor que "lavagem de carros". Na França, fizeram uma lei combatendo a invasão da língua inglesa no cotidiano. Iniciativa que, se não for inútil, é ridícula de qualquer modo.
O principal é entender melhor essa invasão. Os motivos são óbvios -trata-se da preponderância econômica americana, da imposição esmagadora dos ideais de consumo e dos padrões de vida vigentes nos Estados Unidos. Menos óbvio do que os motivos do fenômeno é, talvez, o modo com que isso se dá no Brasil.
Passou de moda dizer que somos colonizados culturalmente pelos Estados Unidos. Passou de moda não porque tenha deixado de ser verdade, mas porque essa verdade mudou de forma. Tento explicar melhor.
Sempre acontece, em países menos desenvolvidos, que as elites se sintam atraídas pela cultura das nações hegemônicas. Nas cortes alemãs do século 18 só se falava francês. Na Rússia do século 19, o mesmo: em "Guerra e Paz", de Tolstói, chega-se à ironia de ver a nobreza russa, em guerra contra a França, conversando o tempo todo na língua do inimigo.
Quem era "colonizado", quem estava sob a influência do estrangeiro, eram as elites. Daí a ligação entre revolta popular e nacionalismo; o "povo" era a raiz, a verdadeira alma nacional, esmagada pelo entreguismo das classes dominantes. Sorry pelo vocabulário que estou empregando; mas as coisas eram assim.
Há uma diferença essencial, contudo, entre o domínio americano e o colonialismo do passado. É que, pela primeira vez, a influência cultural não se exerce apenas sobre as elites, mas sobre a massa. Chegou por meio do cinema, das histórias em quadrinhos, da música popular, do rádio e da TV, não pela literatura, pela filosofia ou pela ciência. Foram os meios de comunicação de massa, e os produtos do consumo, que deram o tom dessa influência.
Até há algum tempo, era razoável chamar isso de influência "cultural": a ideologia de Hollywood, a linguagem musical, as roupas e atitudes americanas conformavam, em parte, nosso modo de ver e sentir as coisas. Mas ultimamente começo a achar que mesmo o termo "cultural" já é elogio no caso da dominação americana.
Veja-se o caso dos bonés. Todo garoto brasileiro vive atrás dos bonés de time de basquete. Mas certamente ignora a escalação do Lakers ou do Chicago Bulls, não acompanha o campeonato, não torce por esse time ou por aquele outro, tanto que em sua coleção coexistem todos. E o que dizer de um favelado com a camiseta da Harvard University?
Simplesmente se ignora o sentido daquilo que está influenciando a gente. Em muitos casos, não é um domínio cultural o que está em jogo. Seria, se as pessoas entendessem, ou compartilhassem, ou absorvessem, a mensagem estrangeira. Se a traduzissem, ou adaptassem, ou mesmo se imitassem mal, deturpassem.
Mas a alienação cultural hoje em dia parece ser de tal ordem que muitas vezes já não estamos mais sob a égide das "idéias fora do lugar", para fazer uso da fórmula célebre de Roberto Schwarz. Há um tipo de influência americana que não mais pertence ao campo cultural; as idéias continuam fora do lugar, mas ocorre também o caso de não haver idéia nenhuma -só resta o "fora do lugar".
Talvez seja uma regra de nossa época a de que os conteúdos de qualquer mensagem se perdem, só restando a forma, ou uma espécie de mensagem em segundo grau. Assim, pouco importa o que significam os Lakers -usar um boné desse time não é interessar-se por ele. Só importa que se esteja usando um boné americano. É como se um país, em vez de importar eletrodomésticos ou batatas fritas, fosse fascinado pelos papéis de embrulho, pacotes, embalagens.
O boné já contém uma mensagem suficiente por si próprio, a da "americanidade". Faz o sujeito sentir-se mais americano, e portanto melhor, ainda que seja incapaz de usá-lo como um americano o faria; pois o americano, bem ou mal, sabe do que trata a insígnia daquilo que leva na cabeça.
Recebi outro dia pelo correio uma fita curiosa. Intitula-se "Yo Mother-Fucker" e se propõe a ensinar ao público brasileiro tudo quanto é palavrão no inglês americano. Barbara Gancia, em sua coluna de quarta, conta que também recebeu a fita; detestou a idéia.
"Disgusting", ela disse. Não sei. Achei engraçado. O humor da fita está em imitar à perfeição o modelo de ensino de línguas desses fascículos com cassete que se vendem nas bancas.
Ouvimos primeiro a voz de um bandido, um favelado furioso, berrando um palavrão. Depois, uma voz professoral e paciente repete o palavrão, devagar e com dicção perfeita. Segue-se a tradução ao português, pronunciada com o mais inocente sotaque americano, numa literalidade bem engraçada. "Rwofahwrourdududid", vocifera o marginal. "Êili díss quii voucêi éi uum cháát", explica o locutor.
A fita é assinada por um professor de "slang e rapper, podendo ser encomendada à P.O. Box 252, La Quinta, California, 92253.
Com certeza, há gente com curiosidade de aprender a gíria dos gângsters e favelados americanos. Aquilo que se ouve nos filmes de Quentin Tarantino não é o que se ensina nas escolas de inglês.
Naturalmente, quem está interessado em falar como um marginal americano e se dispõe a encomendar uma fita dessas não é o favelado brasileiro e sim o jovem de classe média alta.
O que nos leva ao paradoxo da dominação cultural americana recente. As elites brasileiras no século 19 eram colonizadas pelas elites estrangeiras. Mas a produção cultural de massas americana, os filmes de Hollywood, as músicas de rock incorporaram mais e mais um grande realismo social; a linguagem crua, o cotidiano dos guetos negros, a violência são seu produto de maior sucesso. De modo que hoje as classes médias e altas brasileiras são influenciadas mais e mais pelos modos e linguagens do proletariado americano.
Não se trata mais do xarope edificante, da ideologia do sucesso e do esforço próprio, dos ideais democráticos e ilusões que mantiveram décadas de filmes hollywoodianos. Tudo isso continua, é claro; mas com uma dose de agressividade, de crueza, de crítica social mesmo, muito maior. O submundo dos guetos chegou com força à cultura americana; o pai de família branco, de classe média, choca-se ao ver o filho voltando do colégio com gingas e gírias de negro.
Assim, a influência americana no Brasil pode estratificar-se em três níveis: na classe baixa, é uma "americanidade" sem sentido, nas camisetas de Harvard esburacadas. Na classe média, é uma senha de consumo, um padrão de qualidade; "furniture" em vez de mobília. Na classe alta, oscila entre Miami e o gangsterismo; consumo de luxo aos palavrões.
O que talvez não seja tão estranho; a lúmpen-burguesia do Terceiro Mundo não dispõe de outra cultura. Quanto ao clássico colonialismo cultural, o da importação de idéias etc., não mudou muito. Só que a literatura e a filosofia não exercem mais influência nenhuma. São a economia e as teorias de administração que funcionam como ideologia às claras, sem firulas, para nosso tempo. E nossos ideólogos e tecnocratas, quase todos com passagem acadêmica pelo Primeiro Mundo, orgulham-se de repetir mais radicalmente do que nunca as teses do FMI.
Pelo menos entendem o próprio jargão. O restante da população se deixa influenciar pelo que nem mesmo entende, assim como macacos amestrados atingem algum treino na manipulação de botões em laboratório, como se dominassem um código de linguagem. O colonialismo pelo menos se limitava a preconizar a "inferioridade" das raças. Chegamos a um ponto em que alienação se confunde com a animalização imitativa. Mas todos parecem contentes com isso.

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