São Paulo, quarta-feira, 2 de agosto de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ministro Jatene usa raciocínio cirúrgico

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Não há quem não respeite e admire a figura de Adib Jatene. O ministro da Saúde é "uma quase unanimidade nacional", diz Ricardo Kotscho na Revista da Folha deste domingo. Fala-se há bom tempo na necessidade de criar um "ministério de Jatenes": esse desejo, ou promessa, consta com regularidade das plataformas eleitorais.
Desconfio que um ministério de Jatenes seria péssimo negócio, tanto para o governo quanto para o país. Começando da perspectiva governamental. O ministro Jatene abriu campanha na imprensa pela criação de um novo imposto, a Contribuição sobre Movimentações Financeiras; quer que a receita seja aplicada no setor da saúde. A área econômica resistiu, o presidente vacilou, terminou cedendo, Jatene comemora.
É fácil perceber que o episódio põe todo o governo em má situação. Jatene impôs sua vontade, sua política, suas soluções ao conjunto da administração federal. É como se o presidente cedesse à pressão de um só ministro. Sem sindicatos ou ameaça de greve, Jatene extrapolou a função de auxiliar do presidente para agir quase como líder de oposição.
Não se trata de um partido negociando pontos na reforma constitucional, não se trata de movimento reivindicatório da sociedade civil, não se trata de nenhuma força política considerável, mas apenas de uma pessoa, de um nome, de um ministro.
"Sou infritável", disse Jatene; a frase soou como: "O Presidente não terá coragem de me demitir, nem de recusar o que pleiteio". Mas, de duas uma: ou o Presidente estava convencido de que só com um novo imposto poderia resolver o problema de verbas da saúde, e então isso já deveria ter constado de seu programa de governo (hein? programa?) e os ministros econômicos teriam de ficar de acordo, ou não havia necessidade do imposto, sendo possível encontrar outros caminhos para custear o setor e a campanha de Jatene teria de ser abafada logo de início.
Imagine-se um ministério de Jatenes. Teríamos então uma contribuição especial para o Meio Ambiente, outra para a Moradia Popular, mais um imposto para o Menor, o dízimo do Esporte Amador, o empréstimo compulsório para a Reforma Agrária, o tributo provisório da Educação, o programa de apoio obrigatório à microempresa, o imposto-desempregado.
E mesmo a área de Saúde é vaga demais. Quanto desse tributo irá para o combate à hanseníase, quanto à tuberculose, quanto a campanhas de vacinação? E, em vez de 0,25% dos cheques para a saúde em geral, teríamos, digamos, 0,001% obrigatoriamente destinados a ações contra o bócio no vale do Jequitinhonha, 0,005% para pulverizações contra o mosquito da dengue. Basta que o ministro Jatene tenha seus pequenos Jatenes em cada departamento do ministério da Saúde e vinculações de porcentagens nas verbas públicas teriam de ser estabelecidas, de uma vez por todas, nos seus mínimos detalhes.
Tudo fica surrealista num país onde tudo é prioridade. Não há quem negue que a saúde é uma prioridade. A educação também. O meio ambiente, sem dúvida, a agricultura... a pesquisa científica... a cultura. No limite, a proposta de Jatene levaria à criação de um imposto para cada prioridade.
A consequência é óbvia: os impostos que já existem, estes sim, perderiam qualquer sentido. Aliás, tudo conspira para que não se conheça o sentido deles.
Em tese, os impostos tradicionais, como o Imposto de Renda, serviriam para cuidar das necessidades básicas da sociedade. Ocorre que o Estado brasileiro é incapaz de funcionar a contento. Conhece-se muito pouco do que é feito com a arrecadação.
Cria-se um círculo vicioso. Uma verba especial para gastos sociais é usada para custear recepções do Itamaraty. Escândalo! O que fazer? Um novo imposto, que criará verbas, estas sim especiais, para gastos sociais, agora para valer.
Como o Estado está falido, não há garantia de que uma vinculação de verbas seja de fato respeitada. Sabe-se (ou melhor, não se sabe) o que foi feito com o dinheiro do Finsocial -um imposto inventado na década de 70 para a promoção dos setores desvalidos.
Em última análise, tudo é "social" e tudo reverte para o bem do país. Pagar a dívida externa aos bancos credores significa limpar nosso nome no exterior, assegurando novos investimentos, novos empregos, menos miséria e, por consequência, a diminuição do bócio no vale do Jequitinhonha...
O raciocínio dos economistas é sempre infernal, porque atua no âmbito irrespondível do "sistema" -uma entidade que possui vasos comunicantes e tende a ser harmoniosa, de modo que o lucro privado termina sendo a felicidade de todos, uma taxa de juros escorchante é para o bem geral, e toda recessão serve para que logo adiante o país cresça mais.
Contra esse pensamento "sistêmico", feito de paradoxos otimistas a longo prazo, o raciocínio de Jatene é cirúrgico, alopático: cuido deste ponto aqui, a Saúde, injetando verbas; irrigarei de sangue orçamentário esta artéria obstruída.
O problema é que tanto a operação, ou sangria, desejada por Jatene, quanto o laissez-faire social dos economistas não atingem a patologia do Estado, e da sociedade, em que vivemos.
Falta dinheiro e se criam novos impostos, porque o Estado é incapaz de dar conta de todas as prioridades que estão a seu encargo. Toda a ordem política brasileira -o famoso "fisiologismo"- sobrevive graças à manipulação política de verbas que vêm remendar, conforme a força de um deputado ou de um partido, a carência geral de suas bases eleitorais.
É assim que o deputado fisiológico põe uma emenda no orçamento criando uma estradazinha ou um ginásio de esportes no vilarejo que o elegeu. Mas o governo não dá conta de tudo o que gasta, tem dívidas cavalares, estatais, previdências etc.
A crise do Estado brasileiro talvez se localize no próprio modelo de desenvolvimento econômico que se criou, a partir dos anos 50. De um lado, acreditava-se que indústria e investimento externo resolveriam por si sós nossos problemas. De outro, manteve-se uma estrutura de dominação arcaica nas áreas mais atrasadas.
O resultado foi exemplar: a indústria criou novas necessidades -"prioridades"- e a oligarquia manteve seu poder usando o orçamento federal de forma fisiológica. Direitos sociais do trabalhador urbano ao lado de "projetos de desenvolvimento regional" e de isenções fiscais para usineiros e latifundiários; gastos enormes na criação de um parque industrial moderno, gastos enormes na irresponsabilidade econômica de um Congresso dominado pelo clientelismo.
E assim ficamos divididos entre dois raciocínios, duas ordens de prioridades: economistas "sistêmicos" contra cirurgiões e fisiologistas. Curioso que sejam os economistas a propor remédios amargos e os médicos a exigir impostos.

Texto Anterior: Harnoncourt esvazia "As Bodas de Fígaro" com seu formalismo
Próximo Texto: Gravuras mostram alegria de viver de Miró
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.