São Paulo, quarta-feira, 2 de agosto de 1995
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Nanni Moretti faz comédia a partir do silêncio

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Já se disse de Nanni Moretti que ele é uma espécie de Woody Allen italiano. De fato, assim como Allen, Moretti é um artista versátil: escreve, dirige e protagoniza seus próprios filmes.
Além de obras marcadamente autobiográficas, ambos guardam o mesmo desprezo irônico pela vida pequeno-burguesa, com sua moral tacanha, suas obsessões domésticas, seus ritos de consumo e outros cacoetes diários que compõem uma existência desprovida de qualquer grandeza.
Até no aspecto físico Moretti faz lembrar Allen. São tipos franzinos, tímidos, titubeantes, entediados, melancólicos. A ironia, nos dois casos, serve para potencializar a falta de tato para as coisas cotidianas e o desdém pela vida prática e em sociedade.
Mas, se no caso de Allen, a fórmula que o consagrou parece saturada, em Moretti vemos um cineasta no auge de sua forma. ``Caro Diário", seu último filme, que agora sai em vídeo, é prova disso.
A força do filme vem daquilo que, à primeira vista, parece ser um defeito: ``Caro Diário" quase não tem ``história", não há trama, apenas um fiapo de enredo.
Nos três episódios que compõem o filme, vemos situações que derivam de anotações desencontradas do diário do próprio diretor. Este funciona quase como um pretexto sobre o qual Moretti vai pintando um painel repleto das cretinices cotidianas do homem dito civilizado.
O primeiro episódio, talvez o melhor de todos, mostra Moretti em sua lambreta, vagando a esmo pelos bairros de Roma, interpelando tipos que surgem e desaparecem do filme sem propósito.
Na sucessão de paisagens e personagens, acompanhamos os devaneios do diretor, seu desejo de rodar um filme que fosse feitos só de fachadas e interiores de casas, sua visita ao local onde Pasolini foi assassinado, suas impressões sobre um bairro de novos ricos, onde tudo ``cheira a videocassete e chinelos do tipo pantufa".
No segundo episódio, Moretti e um amigo saem em busca de uma ilha tranquila, ao norte da Sicília, onde possam trabalhar e escrever. Encontram só aborrecimentos, barulho, pessoas insuportáveis.
Mais tormentos esperam o diretor no episódio final, quando ele pula de médico em médico, buscando em vão curar uma coceira que ninguém é capaz de diagnosticar corretamente.
Por trás da sequência de gags, desencontros e tipos divertidos, que Moretti explora dentro da tradição das comédias italianas, o que afinal importa e se retém de seu filme é a sensação de profunda solidão do diretor-personagem.
Marcelo Coelho observou que as cenas de comédia em ``Caro Diário" surgem como que ``rodeadas de vazio, intercaladas por momentos de silêncio". Um silêncio que diz muito mais do que o murmurinho incessante e frenético de homens, afinal, ocos.

Vídeo: Caro Diário
Direção: Nanni Moretti
Distribuição: Look Filmes/Vídeo Arte do Brasil (tel. 011/575-6996)

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