São Paulo, quarta-feira, 2 de agosto de 1995
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Harnoncourt despolitiza ópera iluminista

LUÍS ANTÔNIO GIRON
ENVIADO ESPECIAL A SALZBURGO

A despolitização do conteúdo de duas óperas iluministas projeta à estratosfera o maestro austríaco Nikolaus Harnoncourt, 66.
Astro-rei do Festival de Salzburgo deste ano, ele dirige desde 23 de julho a montagem de ``As Bodas de Fígaro", de Mozart. Aproveitando a ocasião, lançou anteontem o CD duplo com a ópera ``Fidelio", de Beethoven.
O maestro faz sucesso porque desmonta o relógio das abordagens políticas dessas duas óperas. Para um público farto de política e faminto de individualismo, a atitude vem a calhar. Ainda que pareça puro teatro do absurdo.
Mozart e Beethoven sempre foram entendidos como figuras de ponta do Iluminismo na música. Mozart achincalha a aristocracia em ``As Bodas de Fígaro" com uma crítica ao direito à primeira noite que os nobres ainda mantinham na época em que a ópera estreou, em 1786, em Viena.
``Fidelio" veio à luz nove anos depois, na mesma cidade. Beethoven encena a prisão e libertação do revolucionário jacobino Florestan.
Para Harnoncourt, porém, as duas óperas são sentimentais e, se pregam algo, é o amor conjugal. A política é um dado de ocasião.
Com tamanha guinada interpretativa, a música histórica atinge a ``mainstream" e Harnoncourt, o ápice. Fez o discurso de abertura do festival deste ano, em que condena a arte comercial, embora faça parte deste comércio.
Ele falou à Folha entre a coletiva de lançamento do CD e o banquete em sua homenagem, na Residenz, antigo palácio dos arcebispos de Salzburgo.
O maestro parece acostumado a cerimônias. Além de músico, pertence à família Habsburgo. Por uma dessas coincidências do fado, Harnoncourt descende dos monarcas contra os quais Mozart e Beethoven apontaram as trompas.

Folha - Extirpar política dessas óperas não signifca usurpação histórica?
Nikolaus Harnoncourt - Não, significa fidelidade. O caso de ``Fidelio" é exemplar. Ela sempre foi apresentada na Áustria em momentos de crise política como uma espécie de flâmula. Em 1933, virou desculpa para um manifesto pró-nazista. Em 1945, serviu para a celebração do fim do nazismo. Em 1956, festejou a reconstrução.
Sempre a opressão é enfatizada. Mas Beethoven queria falar de amor. A obra aborda a essência do amor verdadeiro, em que a mulher que ama o marido está preparada para fazer tudo por ele.
Folha - E ``Figaro"?
Harnoncourt - É um ``Frauenstück", uma peça sobre mulheres: Susana, a princesa e as outras. É política no sentido em que qualquer obra de arte pode ser. A censura interveio não por causa da ópera, mas da peça de Beaumachais, já bastante conhecida.
Folha - Seu discurso na abertura do festival, ``O Que é a Verdade?", criticava a crescente mercantilização da música. Afinal, qual é a verdade?
Harnoncourt - Pergunte a Pôncio Pilatos. Acho que não existe massa e, portanto, cultura de massa é uma palavra fantasiosa. O público é formado por indivíduos e é a eles que a música atinge. Um músico pode trabalhar com o mercado desde que o faça de maneira independente e certa.
Folha - Como?
Harnoncourt - Faça o teste do ferro. Passe a ferro uma camisa ao mesmo tempo que ouve uma música. Se você fizer um buraco na camisa, então a música cumpriu seu objetivo. Música serve para inquietar e prender o sujeito a ela.
Folha - Como o sr. analisa a moda da música histórica?
Harnoncourt - É perigosa. Quando ajudei a fundar o movimento, pensava em recuperar música por seu sentido musical, não por causa da história.
Hoje vejo o contrário. Renascem autores de segunda classe, como Lully e Gluck, só por impulso histórico. Esses dois eram bons de teatro, mas péssimos em música. Lully, italiano, não poderia ter vivido na Itália com sua pequena arte. Mudou-se para Paris. Jamais o gravaria. Hoje fazem música histórica sem emoção.
Folha - Daí o o sr. tê-la abandonado?
Harnoncourt - Não a abandonei. Lanço no mês que vem ``The Fairie Queen", de Purcell, um dos grandes barrocos, ao lado de Biber e Schmelzer. Mas só interpreto o que gosto. Bruckner, Strauss...
Folha - Por que o sr. não aborda historicamente os românticos e modernos?
Harnoncourt - É desinteressante. Há uma continuidade de prática desde o século 19. Gravar Alban Berg (1885-1935) com instrumentos históricos soaria ridículo. Mesmo assim, a melhor abordagem do ``Concerto para Violino", de Berg, é de Anton Webern, numa gravação dos anos 30. Vou fazer o concerto em 1996 em Amsterdã.

LEIA MAIS
sobre o festival de Salzburgo à pág. 5-7

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