São Paulo, quarta-feira, 2 de agosto de 1995
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Demarcações sem critérios

SALOMÃO CRUZ

A demarcação de áreas indígenas é regulamentada pelo decreto 22 de 4/2/1991, com base no parágrafo primeiro do artigo 231 da Constituição Federal, em que fica claro que as terras indígenas: a) são ocupadas pelos índios sob forma de habitação; b) são as utilizadas para suas atividades produtivas; c) são as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais, necessários aos seus usos, costumes e tradições.
São critérios subjetivos, que não validam o pressuposto defendido por muitos de que demarcar áreas indígenas significa estabelecer vastas reservas. Definidas simplesmente com base nesses critérios, algumas reservas indígenas brasileiras, notadamente na Amazônia, não levaram em consideração nem sequer os diferentes níveis de aculturação dos índios, como preconiza o Estatuto do Índio, que, em clara redação, define as diversas modalidades de atendimento que devem ser dispensadas pelo Estado aos indígenas, suas comunidades e situação perante a sociedade.
A combinação de dois fatores -o caráter unilateral do decreto e o exíguo prazo constitucional para definir as reservas- resultou na demarcação de imensas áreas, pois os critérios subjetivos do preceito constitucional foram definidos por quem desconhecia as realidades e as vocações da Amazônia.
A indefinição, ou a falta de definição clara dos critérios de demarcação de áreas indígenas, gera graves problemas, tumultos institucionais e jurisdicionais, levando, muitas vezes, os órgãos federais a agirem sem base legal, muitas vezes contrariando a própria política indigenista oficial -se é que esta existe-, favorecendo a ação de grupos que, sob a argumentação de defesa dos índios, estão interessados em gerar conflitos, escondendo uma inteligente defesa de interesses alienígenas e uma completa aversão ao desenvolvimento regional.
O governo federal avocou a si, embasado na Constituição, a responsabilidade de gerir a política indigenista brasileira. A Funai -o órgão indigenista- tem proposto, e a União vem criando imensas reservas, recaindo os problemas decorrentes de sua arbitrariedade sobre os Estados e municípios. De fato, simples portarias vêm retalhando territórios estaduais, em flagrante agressão ao princípio da autonomia federativa.
A inconsistência do decreto nº 22, de 4 de fevereiro de 1991, fica evidenciada pela simples análise da relação entre áreas e populações indígenas dos Estados da Amazônia, sem que seja preciso considerar aspectos importantes como os diferentes níveis de aculturação e as características regionais.
Em Rondônia, existem 3,8 milhões de hectares para 4.000 índios; no Acre, 1,8 milhão de hectares para 8.500 índios; no Mato Grosso, 12 milhões de hectares para 15 mil índios; no Amazonas, 35 milhões de hectares para 43 mil índios; em Roraima, 12,8 milhões de hectares para 20 mil índios, e no Pará, 22 milhões de hectares para 8.000 índios, demonstrando essas diferentes relações demográficas, não havendo nenhum critério definido de demarcação.
A constatação de uma situação surrealista, gerada irresponsavelmente, pode ser observada ao analisar-se individualmente algumas reservas, como a Mapuera, em Roraima, que em seus 722 mil hectares não é habitada por nem sequer um índio Mapuera, porque o mais próximo está a 75 km, no Pará.
Exemplificam essa situação, igualmente, os casos da reserva Baú -de 1,85 milhão de hectares para 65 índios Menkranotire- e da reserva de Cachoeira Seca, com 1 milhão de hectares para 111 índios, ambas no Estado do Pará. A revogação do decreto 22/91 e o estabelecimento de normas claras e definidas para a demarcação de áreas indígenas são cobrados pelos amazônidas, que não aceitam mais a ditadura cultural imposta pelo centro-sul do país.
A Amazônia só se integrará ao território nacional quando a sociedade entender ser imprescindível um amplo debate regional, fundamentado no pressuposto de que o mais importante é buscar alternativas de desenvolvimento para índios e não-índios, transformando o decantado potencial natural em matéria-prima para o bem-estar social da população amazônida, em consonância com a conservação do meio ambiente.
Finalmente, o que a sociedade espera dos poderes públicos é que as terras descritas na Constituição tenham seus limites de abrangência fixados, resolvendo um problema que há décadas impede a definição de uma política de ocupação racional e de desenvolvimento sustentável da Amazônia.
O direito do índio à terra é inquestionável. Os critérios para definir a forma e o tamanho dessas reservas, elaborados de forma autoritária, sem ouvir os próprios índios e a sociedade envolvente, certamente são discutíveis. E por que não discuti-los, quando até as propostas da Funai são contraditórias?

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