São Paulo, quarta-feira, 2 de agosto de 1995
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Deformação da Constituição

DALMO DE ABREU DALARI

A decisão do parlamentar balizada por interesses pessoais e não públicos caracteriza desvio de poder
DALMO DE ABREU DALLARI
As propostas de reforma constitucional enviadas pelo presidente da República ao Congresso e já aprovadas formalmente pela Câmara dos Deputados padecem de vícios fundamentais, não resistindo a uma análise jurídica que vá um pouco além das aparências.
Há de fato um vício substancial, consistente na afronta ao espírito da Constituição, expresso nos princípios fixados pela assembléia constituinte. Mas além disso há outros vícios de extrema gravidade, que começam com a origem das propostas e passam pela forma de aprovação, sendo público e notório que esta não decorreu do exercício regular do mandato da maioria dos deputados, mas de um confessado desvio de poder.
Por tais motivos, ainda que essas propostas consigam aprovação também no Senado, existem bons fundamentos jurídicos, que são bem mais do que a alegação de pequenas falhas formais, para pedir que o Supremo Tribunal Federal declare sua nulidade.
A questão da verdadeira origem das propostas tem, no caso, importância fundamental, pois por meio desse ponto fica mais fácil perceber que o conteúdo está ligado a determinados interesses, que não são os do povo brasileiro.
E isso é gravíssimo em relação a qualquer lei e mais grave ainda quando se trata de um ``pacote" de emendas. Note-se, desde logo, que tais propostas, afetando o espírito da Constituição, não foram anunciadas durante a campanha eleitoral, ficando excluída a hipótese de que o povo tenha aderido a elas ao escolher o candidato presidencial.
A par disso, no momento de ser empossado no cargo, o presidente da República assumiu publicamente o compromisso de ``manter, defender e cumprir a Constituição". Esse compromisso é uma exigência constitucional e, além de seu valor moral, tem a natureza de obrigação legal, cujo descumprimento deve acarretar consequências jurídicas.
Para qualquer jurista brasileiro seria uma honra imensa e motivo de justo orgulho ser o autor de uma proposta de emenda constitucional encampada pelo presidente da República e remetida ao Congresso, sentindo-se ainda mais honrado o autor de um conjunto de emendas que afetasse a Constituição.
E, estranhamente, não se sabe quem foi o jurista ou a equipe jurídica que preparou o pacote enviado pelo presidente FHC ao Parlamento. Mas a consideração de alguns dados permite a conclusão de que não houve propriamente autores das propostas no Brasil, mas simples adaptadores de documentos que circulam pela América Latina.
O ``Informativo Andino", publicação da Comissão Andina de Juristas (nº 100, março 1995), traz uma informação interessante sobre a proposta de reforma da Constituição do Equador, de iniciativa do chefe do Executivo equatoriano.
Sintetizando o conteúdo das modificações pretendidas, são ressaltados os seguintes pontos: ``Entre os principais aspectos da proposta do Executivo encontra-se a plasmação da política econômica atual. Ela está claramente refletida na eliminação dos entraves para a privatização, inclusive dos serviços públicos. Dessa forma, fica reduzida a área da economia de exclusiva competência do Estado, ficando também reduzida sua capacidade de intervenção e participação nesse setor".
Quanto aos aspectos sociais: ``Isso se evidencia também na diminuição da função social do Estado, reduzidas suas obrigações sobre direitos sociais. Assim, por exemplo, se reduz a gratuidade do ensino público, enquanto que, relativamente à seguridade social, se estabelece a possibilidade de sua prestação por instituições privadas ou mistas".
Outro ponto elucidativo é o que se refere à reeleição do presidente da República: ``Reforça-se a autoridade do Poder Executivo -incluindo-se o estabelecimento da reeleição presidencial-, buscando principalmente consolidar seu poder no manejo da economia, com limitado controle do Congresso".
Como se vê, há incrível coincidência com o que se pretende no Brasil e com o que já se fez em outros países, como o Peru e a Argentina. É interessante lembrar que na Argentina se passou a permitir a reeleição do presidente, e Menem foi reeleito; no Peru fez-se a mesma coisa, e Fujimori foi reeleito.
E no Brasil só falta formalizar a proposta, que, na realidade, já está circulando intensamente. Um aspecto significativo é que a Constituição deve refletir as condições políticas e sociais, as aspirações, necessidades e possibilidades de um povo, em dado momento histórico.
É muito estranho que vários países da América Latina tenham evoluído de tal modo que neste momento seus povos estejam querendo exatamente as mesmas coisas e acreditando nas mesmas soluções. A estranheza desaparece se, com realismo, reconhecermos que não há coincidência, mas, simplesmente, origem comum das propostas.
Outro ponto fundamental, que vicia o presente processo de mutilação da Constituição, é o nível das negociações para aprovação na Câmara dos Deputados. Evidentemente, o representante eleito para uma das Casas do Congresso é livre para formar suas convicções, merecendo o máximo respeito sua atitude de aprovar ou rejeitar determinada proposta, conforme lhe pareça mais condizente com o interesse público.
Mas esse ponto é fundamental, sendo requisito essencial para a legitimidade de seus atos: a decisão do parlamentar deve ser balizada pelo interesse público e não por interesses pessoais do parlamentar ou de um grupo a que ele pertença. Se estes prevalecerem, a decisão é ilegítima e, se for possível provar que houve barganha tomando por base os ganhos pessoais, isso é desvio de poder, sendo juridicamente anuláveis os atos praticados com essa motivação.
No caso da recente aprovação das propostas de reforma constitucional na Câmara dos Deputados, a barganha se tornou pública e notória, sendo minuciosamente relatada pela imprensa.
Apenas como ilustração, a própria Folha informou que ``em troca" de benefícios econômicos a bancada ruralista votaria com o governo. Houve amplo noticiário sobre barganhas de várias espécies, evidenciando que os votos que proporcionaram a maioria na Câmara não foram utilizados com a finalidade de promover o bem público, de que nem cogitaram aqueles deputados, mas, tão-só, de assegurar benefícios pessoais. Está, assim, bem caracterizado o desvio de poder.
Por todos esses motivos, ainda que o Senado não tenha comportamento melhor do que o da Câmara dos Deputados, haverá um novo capítulo, no âmbito do Judiciário. Existem bons fundamentos para que, numa decisão eminentemente jurídica, se evite que uma Constituição feita com participação popular seja deformada pelo mau uso dos instrumentos formais da democracia.

DALMO DE ABREU DALLARI, 62, advogado, é professor titular da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo). Foi secretário dos Negócios Jurídicos da Prefeitura de São Paulo (administração Erundina) e presidente da Comissão Justiça e Paz (SP).

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