São Paulo, sábado, 5 de agosto de 1995
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"Arrependidocracia" é pior que a liberdade do culpado

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A Justiça italiana tem aceito, nos últimos anos, a colaboração de criminosos que se disponham a delatar antigos companheiros ou administradores e políticos. Assim, bandidos em vários graus de periculosidade, passam a ser prestigiados colaboradores da Justiça, considerados ``pentiti", ou seja, arrependidos.
Chamar essa gente de ``arrependidos" é jogo de palavras. Não há meios de medir seu alegado arrependimento. Os supostos ``pentiti" têm feito toda sorte de denúncia, em troca de penas de prisão mais brandas ou de melhores condições de vida, acertada com a magistratura da Itália. O ``Osservatore Romano", órgão oficial do Vaticano, fez vigorosa crítica à ``arrependidocracia", enquanto modo de movimentar a Justiça do Estado através da palavra dos delinquentes.
O famoso gângster Thomazo Busceta, que morou no Brasil, é exemplar desse tipo de gente. Dizendo-se arrependido dos delitos praticados, fez uma troca com a Justiça italiana para, garantindo proteção policial permanente contra seus antigos companheiros da Máfia, tornar-se dedo-duro, alcaguete, delator, informante.
Algumas vozes têm-se erguido no Brasil, sustentando que devemos seguir o exemplo italiano e acolhermos, em nossa lei, a troca de denúncias por penas mais brandas. Sou contra a tendência.
Considero a troca imoral. A razão ética é evidente. Há, ainda, uma razão prática. A ``arrependidocracia" estimula muito mais que o dedurismo.
Favorece a chantagem daquele que se propõe a vender seu silêncio não mais à Justiça oficial, mas ao que pode ser denunciado, ou ameaçado de o ser, por dinheiro ou outras vantagens materiais.
Sou ainda contra, por uma razão constitucional. A Carta Magna considera aceitáveis todas as provas lícitas. Ora, a denúncia feita por alguém -punido ou punível pela Justiça- paga através de vantagem processual ou econômica é ilícita em si mesma.
Não se faz Justiça com o escambo de benefícios para o delinquente ``A" para apurar fatos contra suposto delinquente ``B". Quando o Estado ``compra" a palavra do criminoso, para resolver delitos, está confessando a falência de seu aparelhamento oficial (policial, acusatório e Judiciário) na tarefa de revelar e punir os criminosos.
Sou uma vez mais contra, por uma razão da modernidade da vida. As declarações dos acusadores, que se ``arrependeram" dos seus dias de traficantes de drogas, das suas noites de assalto à mão armada, dos seus momentos de estupros e violências, passam a ser transmitidas pelos órgãos de comunicação social como verdades inafastáveis.
O senador e ex-primeiro ministro italiano Giulio Andreotti, com cinquenta anos de vida pública, pode não ser nenhum santo, mas vem sendo crucificado pela palavra de Tomazo Busceta.
Nem é uma questão de palavra: Andreotti tem folha de muitos e bons serviços prestados à Itália. Todavia, ainda que venha a ser absolvido, sua figura de homem público está desmoralizada: o que lhe for contrário (ainda que nem sempre verdadeiro) encontra campo fácil para divulgação.
Tenho escrito, ao longo dos anos, que é melhor absolver dez criminosos do que punir um inocente. Hoje a punição do inocente pode acontecer, de modo irreparável, quando ele passa a ser anunciado como culpado, pelos meios de comunicação, ainda que não seja.
Passados muitos anos, quando a declaração final de inocência vier a ser pronunciada pelo Judiciário, será inútil. A honra da pessoa, de seus filhos, de sua família já estará ferida. Irremediavelmente.

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