São Paulo, domingo, 13 de agosto de 1995
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Mundo perdeu seu Éden

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Um sambista negro brasileiro, vestido a caráter, camisa listrada e boné, aparece abaixado, bunda de fora, defecando carros em charge recente de um jornal argentino. Foi a forma encontrada pela Argentina para protestar contra a política brasileira de restrições ao Mercosul.
A imagem escandalosa era bastante reveladora não só do conceito que os argentinos têm de nós, quanto da resistência que impõem à primazia brasileira em negociações que sequer cheirem a Primeiro Mundo. No fundo, o problema é este: o Brasil, para gargalhada nossa e desconfiança geral da chamada comunidade internacional, está entrando no Primeiro Mundo.
A entrada ainda é titubeante, mas já incomoda. No Sul, acirra os ânimos argentinos, que mandam claro seu recado: o Brasil só entende de samba e Carnaval, a indústria brasileira só fabrica bosta, na expressão da palavra. E, acrescente-se, bosta de negro, historicamente tida como pior do que a do branco argentino, europeu.
Reação pior vem do Norte, onde os Estados Unidos se inquietam por já não conseguirem visualizar um futuro para esse enigma promíscuo que floresce abaixo da linha do Equador.
A impressão de que os americanos estão rindo de nós pelas costas é antiga e traça uma curva no tempo. Vem de parcerias equivocadas como a Aliança para o Progresso, atinge o ápice em figuras como a de Carmen Miranda (1909-1955) e desce até hoje, em linha de riso amargo, em manifestações como o livro ``The Brazilians", do brasilianista americano Joseph Page.
Carmen Miranda -sambista tanto quanto o homem da charge- é o exemplo típico de como os estrangeiros (argentinos e americanos) nos querem folclorizados: ou não nos querem, ou não nos reconhecem. E é, por outro lado, a personificação de uma certa mentalidade brasileira que precisava do aval externo, americano, para nos legitimar como povo.
A geração dos cinquentões brasileiros comemora nostálgica os 40 anos de morte de Carmen Miranda, como se ela fosse um herói nacional. Não passava de uma cantora esforçada, talentosa, exemplo de ambição e persistência feminina em tempos de machismo duro.
Mas representou um raro momento de viabilidade brasileira aos olhos desconfiados do americano: era o samba da branca doida, que adaptava a música popular brasileira ao gosto das platéias brancas ianques. Jamais faria tanto sucesso se fosse mulata. Morreu estafada, sugada pela mesma máquina da feroz mídia americana que a criou.
O que o Brasil fez então foi reimportar Carmen Miranda, via imaginário masculino brasileiro (largamente gay, diga-se de passagem). Miranda estava para o público masculino brasileiro dos anos 40 e 50 como estão Elis Regina e Maria Bethânia para o dos anos 70 e 80 -são divas cultuadas, colecionadas em larga escala, ícones do nosso ideário gay.
A imagem do nosso país traçada no livro de Joseph Page é a de um Brasil que escapa aos americanos, que já não responde pela imagem folclorizante com que costumavam conceituá-lo. É a de um Brasil que fala inglês perfeitamente e já não precisa de macacoas, de balangandãs nem de bananas para aparecer.
O problema é que o Brasil não pôs imagem nenhuma no lugar do Éden exótico que florescia na cabeça dos estrangeiros e há tempos estilhaçou-se pelo chão do mundo. A fonte da angústia e da preocupação americanas com nosso destino é esta: estamos indo para algum lugar que não se sabe qual é.
Para os ianques, o Brasil de hoje é um gigantesco transatlântico à deriva, uma espécie de Titanic em viagem inconsciente, a querer arrastar para o Primeiro Mundo sua escandalosa desigualdade social, sua promiscuidade racial e sexual, a violência criminosa de suas ruas.
Segundo a visão de Page, é como se o mundo tivesse ``caído na real", digamos assim, no que se refere ao Brasil. Entre os erros de percepção cometidos pelo olhar estrangeiro, ele cita, significativamente, o caso do travesti Roberta Close: ``Uma das mais bonitas mulheres brasileiras era, até uma operação para mudança de sexo em 1989, um homem...".
Americanos e cucarachas parecem ter descoberto que a nossa ``dialética da malandragem" não só está entrando aos tropicões no Primeiro Mundo como é mais complexa do que a estilização folclórica que se possa fazer dela.
Mas é claro que Page culpa os brasileiros pela imagem falsa e travestida que o país espalha pelo mundo. Não entende a auto-aceitação muda de nossos defeitos, nossa autogargalhada.
O pálido protesto da diplomacia brasileira quando do episódio da charge argentina é a prova de que não temos nem vergonha nem complexo de culpa. Não somos filhos do catolicismo carola dos argentinos nem do protestantismo arrependido dos americanos.
Americanos e cucarachas temem que nós, na nossa fé cega, panteísta e animista, abalroemos nossa arca de Noé contra a costa intocável do território deles.

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