São Paulo, segunda-feira, 14 de agosto de 1995
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Um computador para cada um, e daí?

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

`A polícia vem que vem brava/Quem não tem canoa cai n'água.' Na infância, esse samba de roda dava uma idéia de polícia. Hoje, muitos anos depois, surge a notícia de que a polícia do Rio pode acabar.
Na infância, as pessoas diziam, quando saíamos: "Menino, cuidado com os carros". Hoje se diz aos carros, quando saem: "Cuidado com os meninos".
O mundo está de pernas para o ar. A única pessoa que diz a palavra revolução é Newt Gingrich, defensor de um impiedoso capitalismo. Ele ainda acredita, embora mais discretamente, que é preciso distribuir um computador para cada pessoa, a fim de equipar todos para a sobrevivência.
Aqui dos trópicos seu discurso parece tão distante quanto as distorcidas vozes de um cosmonauta no espaço. Mas é uma personalidade um pouco mais complicada que a que apareceu na mídia.
Sua formação já reflete um caminho diferente do roteiro clássico dos políticos. Três grandes livros o influenciaram: "Estudo da História", de Arnold J. Toynbee, "Fundação", de Isaac Asimov, e, finalmente, "A Idade dos Mamíferos", de Henry Fairfield.
Em Toynbee, diz que buscou na história um sentido mais amplo, na ficção científica uma visão de mudanças em larga escala e na extinção dos dinossauros e ascensão dos mamíferos radicais viradas de comportamento.
O discurso de Gingrich às vezes é de uma simplicidade cativante: "Quero encontrar um sistema que combine o máximo de liberdade individual com o mínimo de centralização necessária".
No entanto, quando aborda a pobreza, o homossexualismo, um desses aspectos que no sonho tecnológico parecem apenas um vírus no computador, Gingrich é francamente reacionário.
Posso imaginar a lição do desaparecimento dos dinossauros e da supremacia dos mamíferos numa pedagogia de mudanças no comportamento. Mas entre os seres humanos, mesmo e sobretudo durante mudanças radicais, existe sempre uma possibilidade ausente na história natural: a da solidariedade.
Na mesma revista ``Wired", à qual Gingrich concede sua longa entrevista, há uma investida teórica na mesma direção do político republicano. São as idéias de John Brockman, autor do livro "The Third Culture".
Alguns de seus alvos são os intelectuais literários, que estariam em extinção. Brockman os considera reacionários e orgulhosamente ignorantes em ciência. A dominação desse grupo teria retardado para algumas gerações de norte-americanos a visibilidade cultural da ciência e da tecnologia.
Brockman acha que não existe uma cultura intelectual capaz de transformar suas próprias premissas tão rapidamente como as tecnologias estão nos transformando.
Na verdade, para ele, isso só acontece com alguma rapidez nas ciências porque há um choque entre a experiência de todo dia e os esquemas de explicação. Segundo ele, esse choque é o que nos faz sentir que tudo ficou diferente.
Possivelmente Brockman veja na cultura literária um obstáculo ao seu esquema. Algumas de suas críticas aos jornalistas americanos que desprezam os estudos científicos podem até estar corretas, pois há mesmo um certo preconceito contra ``essas coisas técnicas".
Mas a cultura literária ainda é um espaço de crítica ao otimismo tecnológico. Seu progresso não precisa obedecer à tirania da velocidade.
A cultura literária continua sendo um certo anteparo ao triunfalismo do avanço tecnológico. Mas, na verdade, a discussão não precisava ser tão rígida. Colocar de um lado a solidariedade de costas para a técnica e de outro uma técnica que acaba reduzindo a história a uma sobrevivência darwiniana não é o melhor dos cenários.
No Brasil, há um exemplo de superação dessa rigidez quase nunca discutida. Na sede do Ibase, onde se coordenou uma extraordinária campanha da solidariedade contra a fome, surgiu a Alternex, uma rede que abriu as primeiras portas do país para a Internet.
Tanto a campanha contra a fome como a Internet são guiadas por uma anarquia criativa, uma forma de autocontrole que talvez seja a mais avançada que conseguimos alcançar neste fim de século. Os dois elementos, solidariedade e avanço tecnológico, não precisam brigar entre si.
O que observo mais é a Alternex. Já saltou para 4.000 usuários e há sempre gente chegando. No casarão de Vicente de Souza, parece que montaram uma dessas empresas de garagem que estão prontas para decolar. A todo instante se preenche uma nova inscrição e a única linha de telefone para o suporte já não dá vazão às chamadas.
Deveriam ter mais linhas? Creio que sim. Talvez fosse a hora de arrancar, de montar um trabalho moderno e eficiente, num momento em que novas portas comerciais da Internet estão se abrindo e com elas mudanças importantes vão impactar nossa cultura.
Uma vez tive dúvidas para acessar a Alternex e fui buscar ajuda, que na linguagem de lá é suporte. Um homem chamado Mandrake meu deu o suporte e, quando o agradeci pela ajuda, ele disse: "Não se preocupe, eu apenas resolvi um problema que você não tinha antes. É sempre assim, quando se trata de computador.
Pode ser que essa história de Gingrich e outros temas da "Wired" tenham me dado apenas uma chance de resolver um problema que você não tinha antes. Mas, como mamífero, confesso que espero muito mais desse mundo de pernas para o ar.

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