São Paulo, quinta-feira, 24 de agosto de 1995
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Gravadora francesa lança Jobim `inédito'

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Um disco ``inédito" de Tom Jobim acaba de ser descoberto por acaso numa loja do Rio. Autor da proeza: o jornalista e biógrafo da bossa nova, Ruy Castro. Gravado em abril de 1969, nos estúdios A & R, de Nova York, para o selo Versatile, o surpreendente CD tem por título um velho samba que Jobim compôs com Vinicius de Moraes, ``Estrada Branca", lançado por Elizete Cardoso 37 anos atrás. Autor da proeza: a gravadora parisiense Kardum.
Segundo o jornalista francês Patrick Régnier, que o apresenta no quase lacônico encarte, ele deve ser encaixado, na discografia do compositor, entre ``A Certain Mr. Jobim" (1967) e ``Tide" (1970).
O crítico carioca Tárik de Souza, que acaba de editar, com Tessy Callado e Márcia Cezimbra, um livro sobre Jobim, ``Tons sobre Tom", pela editora Revan, não precisa se preocupar. Tudo leva a crer que sua musicografia continua completa. ``Estrada Branca" tem toda pinta de ser uma tremenda cascata, uma fraude. Ou ``uma armação", conforme preferiu caracterizá-lo o músico Almir Chediak, a cuja expertise recorri tão logo pus as mãos no disco.
Depois de seu song book com Jobim, Chediak tornou-se um dos ouvidos mais privilegiados, se não o mais privilegiado, para autenticar eventuais inéditos do nosso maior gênio musical. ``Não é o Tom mesmo", sentenciou, após ouvir várias vezes o CD.
``O Tom jamais tocou violão desse jeito. Isso parece o (Luis) Bonfá ou um discípulo do Bonfá", fulminou Jairo Severiano, o primeiro pesquisador e historiador a inventariar a musicografia de Jobim. Chediak confirma: ``Nem de brincadeira, ele tocava assim. Parece, mesmo, o Bonfá".
O CD tem 11 faixas. Cinco, com temas bossanovistas assinados por gringos a caminho do anonimato como V. Borjas (``Samba de Amor"), E. Hess (``Three Note Samba"), S. Valdez (``Cupids"), B. Whitney (``Girl Upstairs") e B. Rodriguez (``Live For Tomorrow"). As outras seis são de Tom, de parceria com Vinicius (``Janelas Abertas", ``Lamento", além da que dá título ao disco), Newton Mendonça (``Incerteza"), Bonfá (``Samba Não É Brinquedo") e Billy Blanco (``O Morro").
Produzido por Pete Sparro, contou com a participação de 11 músicos, além do Tom. Os únicos conhecidos são Claus Ogerman, parceiro de outras aventuras internacionais, que cuida dos arranjos para cordas, o percussionista brasileiro Dom Um Romão, há tempos residente nos EUA, assim como Gracinha Leporace, que se limita a um parco vocalize. Certos aficionados da MPB talvez conheçam, ainda, o versátil Phil Bodner, responsável por parte do sopro (flauta, oboé e sax-alto) e também, conforme suspeita Jairo Severiano, pelo folgazão solo de órgão, ao estilo Walter Wanderley, que confere a ``Lamento" um mofado toque de boate carioca do começo dos anos 60.
``Nunca ouvi falar nessa música", acrescentou Severiano, referindo-se a ``Lamento". ``Nem eu", ratificou Chediak. Ana Jobim, viúva do compositor, confirma: ``Ela existe, sim". Thereza Hermanny, primeira mulher de Tom, deu as explicações necessárias: ``Lamento" foi composta para o filme ``O Santo Módico" e, por problemas de direitos autorais, nunca havia sido gravada. Sambinha de preguiçosa concepção, não faz a menor falta nas obras de Tom e Vinicius.
Ana tampouco reconheceu a voz do marido no disco. ``Isso tudo é muito esquisito", disse ela. ``No mínimo, um disco pirata".
Patrick Régnier, o jornalista francês que avaliza o negócio, conta que o disco, jamais editado nos EUA por ``falta de qualidade", estava sob custódia de um escritório de advogados, cujo nome não revela. Um desses advogados, sabedor do interesse da Kardum pela música brasileira, entregou a ela o master da gravação, logo depois da morte de Tom. Ainda que fosse uma gravação indiscutivelmente autêntica, os herdeiros do compositor deveriam ter sido avisados da exumação.
Severiano conhece Régnier. Ele escreve para uma revista editada na França sobre coisas do Brasil e já esteve aqui algumas vezes. Parece sintonizado com a carreira de Tom, a ponto de saber que ``Incerteza" foi lançado, em 1953, por Mauricí Moura, mas escorrega ao atribuir a autoria de sua letra a Vinicius. Seu maior erro, contudo, talvez tenha sido acreditar na autenticidade da gravação.
Em 1969, Tom não cantava como Chico Feitosa e outros primitivos rouxinóis da bossa nova, não tocava violão como Bonfá e, em matéria de piano e arranjos, já atingira um estágio de sofisticação que não combina com a musak de ``Estrada Branca", o CD, feito para dançar e embalar o tédio de ascensoristas. 1969 foi o ano em que Tom gravou seu segundo LP com Frank Sinatra. Não precisava de participar de encontros musicais medíocres e defasados como o promovido por Pete Sparro.

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