São Paulo, sábado, 26 de agosto de 1995
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Falta de 'função social' pode até destituir a propriedade

EUNICE NUNES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ter título registrado atestando a propriedade de um imóvel não é suficiente para garantir o domínio sobre o bem. É necessário que a propriedade seja exercitada e atenda à sua função social.
Isso porque a Constituição, ao mesmo tempo em que garantiu a propriedade privada, a submeteu ao princípio da função social. Este princípio junta aos poderes do proprietário -usar, dispor, fruir e reivindicar- o interesse social, o qual pode não coincidir com os interesses do dono.
Pelo menos é assim que entende a questão a 8ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça (TJ) do Estado de São Paulo.
Os desembargadores Osvaldo Caron, Walter Theodósio e José Osório negaram aos proprietários de nove áreas do loteamento ``Vila Andrade", situado perto do Shopping Jardim Sul, no bairro do Morumbi (zona oeste), o direito de reaver os terrenos. No entanto, eles reconheceram o direito a eventual indenização.
Sobre os lotes disputados existe hoje a favela do Pulman. Os proprietários pleiteavam a desocupação da área. Tiveram sucesso em primeira instância, mas o tribunal reformou a sentença. O caso será ainda analisado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Segundo a decisão do TJ, os lotes de terreno reivindicados pelos proprietários, e o próprio loteamento, não passam de mera abstração jurídica.
``A favela já tem vida própria, está dotada de equipamentos urbanos. Só nos locais onde existiam os nove lotes reivindicados residem 30 famílias. Lá existe uma outra realidade urbana. O comércio está presente, serviços são prestados, barracos são vendidos, comprados, alugados, tudo a mostrar que o primitivo loteamento hoje só tem vida no papel", diz o acórdão (decisão de tribunal).
Para os desembargadores da 8ª Câmara Civil do TJ, loteamento e lotes urbanos só existem, efetivamente, dentro do contexto urbanístico. Se são tragados por uma favela consolidada,``por força de uma certa erosão social", deixam de existir como loteamento.
``A realidade concreta prepondera sobre a pseudo-realidade jurídico-cartorária. Esta não pode subsistir, em razão da perda do objeto do direito de propriedade. Se um cataclismo, se uma erosão física, provocada pela natureza, pelo homem ou por ambos, faz perecer o imóvel, perde-se o direito de propriedade", afirma o acórdão.
A existência física dos terrenos não foi posta em dúvida. Mas só ela não basta para garantir a propriedade. Na interpretação dos desembargadores, o fundamental é que a coisa seja funcionalmente dirigida a uma finalidade viável, jurídica e economicamente.
Além disso, por ter surgido uma favela nos lotes reivindicados, a retomada física tornou-se inviável. Seria necessário desalojar 30 famílias (cerca de 100 pessoas), todas inseridas na comunidade da favela.
O desalojamento forçado, segundo o acórdão, seria uma ``operação cirúrgica de natureza ético-social -sem anestesia- inteiramente incompatível com a vida e a natureza do Direito. É uma operação socialmente impossível. E o que é socialmente impossível, é juridicamente impossível".
Os julgadores concluíram também que os donos exercitaram o direito de propriedade de forma anti-social, pois os lotes ficaram abandonados por mais de 20 anos (leia texto abaixo).

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