São Paulo, sábado, 26 de agosto de 1995
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A hora e a vez dos subdesenvolvidos - 1

RUBENS RICUPERO

Quando me perguntam por que aceitei tornar-me secretário geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento), cinco meses apenas após chegar a Roma, respondo que não poderia dar as costas ao chamado de uma organização que encarna, acima de qualquer outra, a marca definidora da minha geração: a paixão pelo desenvolvimento.
Para os que chegamos aos 18 anos em meados da década de 50, o desenvolvimento era muito mais do que um conceito econômico novo (antes falava-se de países avançados e atrasados, de ricos e pobres). Era mais também do que a bandeira política do governo Juscelino Kubitschek, admirável vendedor de idéias (e, às vezes, de ilusões). Após as divisões e os antagonismos que culminaram no suicídio de Getúlio Vargas, JK unira todas as tendências da sociedade, da esquerda à direita, em torno do único consenso básico nacional: o desenvolvimento como meta-síntese do projeto brasileiro.
Havia um certo frescor e muito de ingenuidade em nosso entusiasmo pelas metas quantitativas de produção de barrilha ou soda cáustica, de aço e alumínio. Cheguei até a pensar, naqueles tempos de estudante do científico do Mackenzie, em estudar engenharia de minas na Escola de Ouro Preto, cuja revista folheava na biblioteca do colégio.
Não se haviam ainda tornado irreconciliáveis as oposições ideológicas. Depois de ouvir uma conferência de Roberto Campos, íamos a um café na rua Maria Antônia para ler, no "Semanário", como andava a eleição dos "dez maiores entreguistas do Brasil". Éramos ingênuos a ponto de crer que até a qualidade de nossa vida política e da administração financeira inevitavelmente acompanharia o desenvolvimento material, crença que o recente descalabro dos governos paulistas se encarregou de sepultar de vez com pá de cal. Chegávamos a acreditar que o mal do Brasil era a falta de economistas, pasmem!
Eram os anos da criação e da esperança, da implantação da indústria automobilística e naval, mas também de Brasília, da arquitetura de Niemeyer e do urbanismo de Lúcio Costa, dos "50 anos em cinco", mas, ao mesmo tempo, de Guimarães Rosa, Clarice Lispector e da bossa nova.
Foram os que vieram depois de nós, os chegados à universidade no momento da renúncia de Jânio, da radicalização da crise brasileira no início dos anos 60, do comício da Central e da tomada de poder pelos militares os que começaram a adotar visão mais crítica e conflitiva do desenvolvimento. Nessa época, sob a influência da revolução cubana e animados pela UNE, os centros de cultura popular, o teatro engajado, o cinema novo do "Rio 40 Graus" começaram a popularizar até em música o conceito de "subdesenvolvido".
O espírito, porém, havia mudado. Na década anterior, acreditávamos na possibilidade de promover a transformação e renovação do país por meio do aumento da riqueza material.
Mesmo na vertente cristã, a do movimento "Economia e Humanismo" do padre Lebret, a abordagem era de confiança na ação, um racionalismo de técnico, como no verso de João Cabral: "O engenheiro sonha coisas claras: superfícies, tênis, um copo d'água".
O resto -justiça social, maturidade política, florescimento cultural- teria de vir por acréscimo, como subproduto mais ou menos inevitável do desenvolvimento econômico. Afinal, como prossegue o poema, "o engenheiro pensa o mundo justo, mundo que nenhum véu encobre".
O que mudou nos anos 60 não foi tanto a meta do desenvolvimento. Mudou a crença de que chegaríamos lá por métodos mais ou menos assépticos, a racionalidade a serviço do crescimento da produção e da acumulação do capital. Trocou-se a abordagem do engenheiro-economista pela do ideólogo-revolucionário. Contrastes de classe e revolução social tornaram-se as prioridades e passaram a ser vistas como precondição do próprio desenvolvimento.
No plano internacional, ocorreu mudança correspondente. Após o otimismo desenvolvimentista da década de 60, da Operação Panamericana e da Aliança para o Progresso, começavam a prevalecer o "pessimismo exportador", as teorias da dependência, a visão da economia mundial como gigantesco mecanismo espoliador que não dá hora nem vez ao desenvolvimento dos periféricos. Mas isso fica para a próxima semana.

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