São Paulo, sábado, 26 de agosto de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Vencidos" produzem capitosas cartas

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Algum leitor português que eu porventura tenha pode estranhar de tempos em tempos alguma referência minha feita a Portugal em tom, digamos, galhofeiro, como quando escrevi sobre o filme ``Carlota Joaquina".
Aliás, até leitores brasileiros estranham, como se achar grotesca, do ponto de vista régio, a figura de D. João 6º fosse prova de que pertenço ao grupo da fracassomania.
O que me ocorre dizer ao possível leitor português que me honra com sua atenção é que, rindo de Portugal, estarei em grande parte rindo de mim mesmo. Sou português de quatro costados. Excluída minha avó materna, de doces olhos verdes, cujo sobrenome era Loretti, e minha bisavó paterna, uruguaia, de família Juanicó, estou cercado de lusitanos.
O bisavô que casou com a Juanicó durante a Guerra Cisplatina veio de Portugal como tenente Callado do Exército de D. João (tenho a medalha que ele ganhou na Guerra Peninsular) e quando raiou a liberdade no horizonte do Brasil em 1822 já tinha aderido à nova pátria com armas e bagagens.
O outro bisavô, baiano, chamado Ferreira de Sousa, mal despontou a dita independência passou a se chamar Pitanga, pau da terra, como outros passaram a ser Baraúna, Jequitibá, Índio do Brasil.
Talvez eu nunca tenha sentido tanto a ligação lusitana como quando li, no meu voluntário exílio em Londres durante a guerra, a ``História de Portugal" de Oliveira Martins. O livro é todo de uma rara beleza e em certas passagens é pura poesia, ora áspera, ora luxuosa e barroca.
Não foi à toa que Menéndez y Pelayo, o grande historiador e crítico espanhol que sabia tudo sobre a Ibéria, escreveu que Oliveira Martins foi o maior artista histórico da Península.
Vejam, na ``História de Portugal", o relato que faz Oliveira Martins da chegada a Roma de uma embaixada mandada em 1514 ao papa Leão 10º por nosso D. Manuel, o Venturoso, com a finalidade de obter certos favores papais, mas, sobretudo, para se mostrar ao mundo como o conquistador da Índia.
Diz O.M.: ``Ao Salomão papal enviava o imperador de Sabá um tributo de cortezia".
E segue-se o desfile da Escola de Samba: ``Partiram, primeiro da Porta del Populo, trezentos cavalos guiados à rédea por outros tantos azeméis, vestidos de seda, e os cavalos cobertos por mantos de brocado com franjas de ouro (...) Um elefante, recamado de xairéis preciosos, levava, na sua torre, o cofre onde ia o pontifical oferecido por D. Manuel ao papa; e um naire da Índia, vestindo os seus trajes de seda, ia governando o animal dócil `tão formoso, sendo mui feio, que era coisa gentil de ver'. Chegada a procissão em frente ao castelo de Santo Angelo, o papa, com seus cardeais, apareceu na varanda a recebê-la; e o elefante, molhando a tromba, como hissope, numa bacia de água perfumada, aspergiu, por três vezes, primeiro o papa, depois o povo. Singular cerimônia, extravagante sacerdote!".
Ou vejam O.M. cuidando da Guerra Peninsular imposta por Napoleão à Espanha e a Portugal e da consternação do futuro D. João 6, que sem perda de tempo abandonou seu povo e se mandou para o Brasil com a mulher ninfomaníaca e a mãe doida:
``O princípe-regente e o infante de Espanha chegaram ao cais na carruagem, sós: ninguém dava por eles; cada qual cuidava de si, e tratava de escapar. Dois soldados da polícia levaram-nos ao colo para o escaler. Depois veio noutro coche a princesa Carlota Joaquina, com os filhos. E por fim a rainha, de Queluz, a galope. Parecia que o juízo lhe voltava com a crise. `Mais devagar!' gritava ao cocheiro, `diria que fugimos!' (...) O protesto da louca era o único vislumbre de vida. O brio, a força, a dignidade portuguesa acabavam assim nos lábios ardentes de uma rainha louca!"
Mas minhas raízes ibéricas e meu fascínio pela ``História de Portugal" de O.M. me fizeram esquecer até agora que o assunto desta coluna é um excelente livrinho da Unicamp chamado ``Correspondência" (Daniel Piza já se ocupou dele aqui na Ilustrada) e que reproduz as cartas que trocaram dois estilistas da língua portuguesa: nosso O.M. e o mais nosso ainda Eça de Queiroz.
Eu achei, aliás, ao pegar o livro, que Oliveira Martins ia levar a pior, pois a popularidade de Eça no Brasil só compete, em termos de época, com as de José de Alencar ou Castro Alves, enquanto O.M. é conhecido de pouca gente. Acresce que o livro é comemorativo de dois sesquicentenários já que O.M. em Lisboa e Eça na Póvoa de Varzim nasceram ambos em 1845.
Não há como negar que as cartas do Eça são frequentemente mais divertidas, mas não só são bem interessantes as de O.M. como é curioso sentir, na correspondência, quanta esperança depositava Eça em O.M. em termos da salvação de Portugal.
E que O.M., além de fino artista literário, conhecia economia, contabilidade, comércio. Chegou a ministro da Fazenda de Portugal e assim, ainda que pertencesse ao clube fracassomaníaco dos Vencidos da Vida, tinha ganas de ver se dava um jeito na ``choldra" que era Portugal, como dizia o Eça, também membro do clube.
Os outros vencidos da vida, ainda que todos sofisticados e cultos, sofriam daquele sebastianismo visceral português que acabou desembocando no governo de Oliveira Salazar. Por outras palavras, os vencidos-sofisticados sentiam em O.M. um possível e elegante Messias.
É ainda justo e auspicioso, nesse suave duelo espistolar, que Paulo Franchetti, autor da introdução ao livro da Unicamp, dê a O.M. seu valor, sua merecida estatura.
E -glória das glórias- o próprio Eça, na primeira das cartas desta ``Correspondência", trata em termos deliciosos da obra-prima do grande amigo: ``Só desde que tu escreveste a `História de Portugal' é que eu sei que existiu (...) uma pátria portuguesa com os seus reis, os seus costumes, uma literatura `telle quelle', uns heróis, um ideal comum e um feitio próprio. Antes disso sempre imaginei que Portugal era um país de papelão. Da gente portuguesa conheço apenas a alta burguesia de Lisboa -que é francesa, e que há-de pensar à francesa se algum dia vier a pensar. Como é que é feito por dentro o português de Guimarães e de Chaves? Não sei.
``O `Padre Amaro' é mais adivinhado que observado. E por probidade de artista eu tenho uma idéia de me limitar a escrever contos para crianças e vidas de grandes santos. O que me consola é que todas as nações se vão desnacionalizando e que dentro em pouco há-de haver um só tipo de homem em toda a Europa e o tipo escolhido há-de ser o francês. Os meus romances, que são por ora franceses, serão então nacionais".
Bom. Chega de aspas. A verdade é que diante de prosa como a do Eça e a de O.M. a prosa da gente tem sempre vontade de ceder passagem, ou de dizer, como diria o Eça: ``Après vous".

Texto Anterior: Filme traz vida de uma "party girl"
Próximo Texto: "Kids" desafia adolescentes dos anos 90
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.