São Paulo, domingo, 27 de agosto de 1995
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Sobre repúblicas e vice-reinados

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

Para além das manifestações mais imediatamente perceptíveis -um verdadeiro e deprimente festival de maracutaias, pusilanimidade, mistificação e falta de ética-, o episódio do Banco Econômico expressa, com riqueza de detalhes, a natureza da grave crise institucional em que vem se debatendo o país.
Essa enésima crise de nossa história republicana desenvolve-se, nesta conjuntura particular, como parte do processo de implantação ``tardia" no Brasil das propostas neoliberais consubstanciadas nas políticas econômicas das coligações conservadoras que, com um discurso autoproclamado modernizante, assumem o poder, particularmente a partir da administração Collor.
A incorporação acrítica e mecânica dessas propostas gerou um confronto polarizado em torno de duas matrizes sociopolíticas que disputam o espólio do Estado autoritário e buscam impor sua hegemonia econômica e política.
De um lado, os herdeiros regionais e setoriais do projeto desenvolvimentista fracassado e das estruturas econômico-institucionais desenvolvidas pelo Estado autoritário. De outro, a ``vanguarda" da transição neoliberal representada pela tecnocracia do ``mercado" e pelos interesses internos e externos expressos nos novos ``anéis burocráticos" que tentam comandar a gestão financeira do Estado.
O recente conflito entre a república independente do Banco Central e o vice-reinado da Bahia é apenas uma amostra chocante das vicissitudes de uma aliança espúria, cimentada pelo sentimento comum de desprezo pelos interesses populares e suas organizações, os excluídos do processo de decisões políticas e condenados à condição de vítimas indefesas de um projeto de poder em que o futuro, como o inferno de Dante, deixa de fora qualquer esperança.
Pensar que episódios lamentáveis como o do Banco Econômico são consequência da falta de autonomia irrestrita do Banco Central é, no mínimo, ingenuidade, mas contém muito de desinformação ou má-fé.
O mundo da globalização financeira permite aos aventureiros do mundo das finanças mandar milhões de dólares em um dia para qualquer paraíso fiscal. A capacidade efetiva de intervenção dos Bancos Centrais, pelo menos com os instrumentos atualmente disponíveis, tende a ser relativizada pela avassaladora dinâmica do capital financeiro desregulado.
A possibilidade real de estabelecer práticas e controles mais efetivos de administração monetária e financeira não é uma questão meramente técnica que se pode resolver a partir de verdades teóricas ``reveladas". Ela depende, fundamentalmente, do grau de consolidação institucional e político do Estado, tanto como aparelho de poder operacional quanto como expressão do desenvolvimento democrático da sociedade.
Com um Estado estilhaçado e escassamente representativo e uma sociedade sem um projeto articulador dos interesses de seus diversos segmentos, em que a administração de privilégios em benefício próprio constitui o critério-guia dos detentores do poder econômico e político, não é a existência formal de um Banco Central dotado de ampla autonomia que alterará a influência dos interesses patrimonialistas no manejo dos recursos do Estado.
O affaire do Banco Econômico só explicitou, talvez de maneira mais clara e contundente, as práticas que caracterizam o cotidiano da administração do poder no país. Não é, nesse sentido, apenas um problema de má gestão financeira ou de relações promíscuas entre o Banco Central e o sistema financeiro, mas sim a expressão de uma questão mais geral -o estágio de barbárie capitalista em que se encontram as relações entre os agentes econômicos privados e as estruturas burocráticas do aparelho de Estado, e seus reflexos nas modalidades de utilização privada dos recursos públicos.
O fim do ``patrimonialismo" não se resolveu no passado com uma burocracia ``meritocrática" ou com a gestão eficiente e autônoma dos aparelhos de Estado. Muito menos se resolve com reformas pontuais apresentadas como modernizantes e salvadoras. A questão central não é ter mais ou menos Estado, mas a capacidade política de sua regeneração como Estado democrático.
Se não caminharmos, como nação, na direção de uma maior justiça social e controle político-democrático, seguiremos convivendo com a crônica falta de recursos para a saúde e outros serviços sociais básicos para a população, recursos que seguramente não faltarão, como não faltam na atualidade, para intervenções ``salvadoras" do Banco Central e do Tesouro Nacional na salvaguarda de interesses econômicos e políticos de grupos dominantes setoriais e regionais.
Enquanto não houver controle público e participação efetiva dos usuários e dos trabalhadores na gestão das empresas estatais, estas nunca se tornarão ``públicas" e continuaremos suportando as tentativas de liquidação de grandes empresas produtivas e financeiras de importância estratégica para o desenvolvimento do país.
Em nome da falta de recursos para investimentos em infra-estrutura e da necessidade de abatimento de uma dívida pública cujo crescimento é estimulado pela tecnocracia do Banco Central por meio de uma política cambial e de juros suicida, que beneficia basicamente o capital especulativo nacional e internacional, continuaremos a fazer ``privatizações" das empresas estatais lucrativas e a ``estatizar" as empresas privadas falidas.
Enquanto não formos capazes de canalizar a nossa ira e as lutas do povo brasileiro para formas de participação efetiva na criação e gestão do ``espaço público", continuaremos a produzir uma notável concentração de renda em favor dos setores de maior capacidade econômica, que praticam o rentismo financeiro, e teremos de suportar também o desemprego e a penalização dos salários.
Enquanto não formos capazes de produzir mecanismos eficazes de proteção econômica e social dos segmentos mais frágeis de nossa população, continuaremos assistindo à desestruturação de amplos segmentos produtivos, principalmente de pequenas e microempresas industriais e agrícolas, e à compressão do consumo popular, por conta da defesa de uma política de estabilização claramente regressiva na distribuição de seus custos.
A contradição entre o projeto econômico e de poder do neoliberalismo e os interesses majoritários da população -da qual os exemplos anteriores são uma pequena amostra- não se resolve pelos conflitos entre as tecnocracias ``republicanas" incrustadas nos centros de decisão econômica e os ``vice-reinados" regionais, apesar das recaídas populistas que estes possam apresentar.
A superação dessa situação de crise passa, em primeiro lugar, pela democratização real da sociedade e pelo fim do ``estado de exclusão" em que se encontra a esmagadora maioria da população, via a adequada, soberana e autônoma representação de seus interesses na estrutura e dinâmica institucional da administração pública em todos os níveis.
O Brasil não é fácil de governar, ao contrário do que diz o primeiro mandatário. Está na hora de começar a fazê-lo, democraticamente, começando por ouvir com atenção, sobretudo os excluídos.

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