São Paulo, domingo, 27 de agosto de 1995
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Tirando pêlo da nossa cara

MARCOS CINTRA

A proposta de "reforma" tributária do governo é uma piada de mau gosto. Tem três componentes principais. Faz uma faxina no sistema gerado pela Constituição de 88; esboça uma tímida reforma para 1998; e coloca dois bodes em nossa casa.
A faxina é bem-vinda. Introduz alterações normativas no sistema tributário nacional, fazendo ajustes e correções para evitar distorções como, por exemplo, a emergente guerra fiscal entre Estados e municípios, e atenua a tributação das exportações, da cesta básica e dos bens de capital.
De reforma, se vê muito pouco. A novidade principal está na unificação do ICMS e do IPI. Mas isso só será concretizado em 1998. Cabe lembrar que se cria um novo imposto: transações interestaduais de combustíveis, petróleo e energia elétrica, hoje isentas, passarão a ser tributadas pelo governo federal e poderão implicar elevação no preço desses produtos, com repercussões na cadeia produtiva industrial.
Os bodes chamam-se "empréstimo compulsório" e "quebra de sigilo bancário". A administração federal segue à risca os métodos do comissário soviético que, ao receber reclamações de moradores acerca das péssimas condições de habitabilidade dos apartamentos coletivos nos quais se amontoavam dezenas de famílias, determina que seja colocado no mesmo prédio mais um habitante: um bode fétido e mal cheiroso.
Depois de algumas semanas, resolve atender aos reclamos desesperados dos moradores e, ao retirar o bode, adquire a fama de comissário atencioso e benevolente, ao mesmo tempo em que cessam por completo as reivindicações pelas justas melhorias habitacionais, que jamais pretendeu atender.
Nesse sentido, a reforma tributária muda muito pouco o sistema tributário nacional. Em realidade, não consegue nem sequer atender aos quatro requisitos básicos que o próprio governo enumerou para justificar sua proposta.
Na exposição de motivos são enumeradas quatro metas a serem atingidas pelas emendas constitucionais: simplificação, combate à sonegação, redução do "custo Brasil" e distribuição mais equitativa da carga tributária. Infelizmente, a proposta do governo não atende a nenhum desses quatro objetivos.
A futura extinção do IPI não será suficiente para compensar a nova parafernália burocrática que será gerada com a duplicação dos mecanismos operacionais a serem criados com a competência tributária partilhada entre Estados e União no novo ICMS.
O projeto do governo diz que "os Estados e a União, por conta própria, administrarão, arrecadarão e fiscalizarão as suas respectivas parcelas" no novo imposto, que incidirá sobre a atual base de arrecadação do ICMS. Como a complexidade e a burocracia do atual ICMS são maiores do que as do atual IPI, no mínimo se está trocando seis por meia dúzia.
Se o ICMS já inferniza a vida do contribuinte com apenas um sistema de fiscalização, é fácil imaginar como se tornará ainda mais irracional e complexo com o dobro de fiscais, de normas e de exigências.
Alguma simplificação advirá das restrições a serem impostas à liberdade dos Estados na administração de suas alíquotas do ICMS. Mas isso não permite afirmar que a proposta seja ousadamente simplificadora, como seria desejável.
Ademais, a centralização nas esferas federais no tocante à definição de alíquotas e incentivos contraria o discurso federalista de alguns ministros que sempre criticaram outros projetos de reforma tributária, como o do Imposto Único, por restringirem a autonomia tributária dos Estados e municípios.
Se outra meta do governo é o combate à sonegação, a proposta mostra-se ainda mais pífia. Em realidade, o sistema tributário proposto mantém a mesma estrutura atual. As alterações são marginais e o sistema continua sendo formado primordialmente por imposto declaratórios, como atualmente. Nesse sentido, não há nada que aponte para a redução da evasão fiscal.
Pelo contrário, haverá estímulo adicional à sonegação. Quando da unificação do atual ICMS com o IPI, a alíquota nominal do novo imposto deverá aumentar, se se pretende manter a mesma arrecadação de hoje. Isso implica aumentar o prêmio ao sonegador.
Com um mesmo imposto e sem alterações significativas em sua base impositiva, a elevação da alíquota vai melhorar a relação custo/benefício para o sonegador. Se hoje a taxa de evasão já é alta com alíquotas de 17%, é provável que aumente consideravelmente, se as alíquotas subirem para 25% ou 30%.
Quanto à redução do "custo Brasil", o governo deve estar brincando. Um dos itens mais significativos dessa desvantagem do Brasil frente aos seus competidores internacionais é a instabilidade das regras econômicas, que gera incerteza no planejamento empresarial.
Ora, a desconstitucionalização tributária, como proposta pelo governo, aumenta significativamente as incertezas e sujeita o setor produtivo nacional aos erros e humores da administração pública federal.
A introdução da figura do empréstimo compulsório para conter os níveis de demanda agregada introduz mais um elemento de alta subjetividade e incerteza na definição de cenários empresariais.
Finalmente, não há como dizer que a proposta do governo introduza mais equidade no sistema tributário nacional. A progressividade formal se transforma em regressividade efetiva quando a evasão é alta. A sonegação reduz a carga tributária daqueles que possuem maior capacidade contributiva.
Na medida em que a unificação do ICMS, IPI e ISS elevará a alíquota nominal do novo imposto, haverá mais estímulo à sonegação e, consequentemente, aumentará a regressividade do sistema.
A proposta de reforma tributária do governo mostra-se, portanto, inaceitável. Não seria melhor voltarmos nossa atenção para outras alternativas, como o Imposto Único, o projeto do deputado Ponte ou a proposta do deputado Francisco Horta?

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