São Paulo, domingo, 27 de agosto de 1995
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História oculta do cinema brasileiro

AMIR LABAKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A história oculta dos quase cem anos do cinema brasileiro é a saga dos roteiros não-filmados. Numa cinematografia que atravessou o século em crise crônica, os projetos não-realizados são mais do que notas de rodapé ou curiosidades para especialistas. Representam, sim, capítulos essenciais de uma produção em perene instabilidade.
Virtualmente todos os grandes cineastas brasileiros passaram pela experiência do filme abortado. Não raras vezes foram experiências dilacerantes, que marcaram pontos de virada em suas trajetórias. Em geral, deram a volta por cima e abraçaram novos projetos. Alguns, não.
Destes, o primeiro grande exemplo é Mário Peixoto (1910-1991). Ainda durante a montagem de ``Limite" (1928), Peixoto foi abordado pela atriz, produtora e cineasta Carmen Santos (1904-1952). ``Carmen me encomendou um roteiro que a tornasse atriz indiscutível", lembrou Peixoto pouco antes de morrer. Nasceu ``O Sono Sobre a Areia", sobre o impacto da chegada numa ilha de uma ``mulher da cidade". Achando o título ``bonito, mas não comercial", Carmen o substitui por ``Onde a Terra Acaba".
Peixoto deveria ter entendido o sinal, mas começou as filmagens na praia do Sino, ilha de Marambaia, litoral sul do Rio, em julho de 1931. Os desentendimentos agravaram-se, Peixoto abandonaria o projeto, e Carmen Santos transformaria ``Onde a Terra Acaba" numa versão moderna de ``Senhora", de José Alencar, escalando Octávio Gabus Mendes para a direção. Lançado em 1933, o filme conhece fracasso retumbante. Nenhuma cópia ficou para a posteridade. Trezentos metros não montados do material rodado por Peixoto ainda existem, assim como a sinopse e o roteiro integral.
A experiência marcou o cineasta a tal ponto, que ele tentaria, no imediato pós-guerra, retomar o projeto. Antes disso, contudo, como lembrou à Folha o maior especialista na obra de Mário Peixoto, Saulo Pereira de Mello, o diretor enfrentaria uma sucessão de projetos não realizados: ``Maré Baixa" (1936), desenvolvido com Pedro Lima; a primeira versão do roteiro de ``Inconfidência Mineira" (1937), para Carmen Santos; ``Três Contra o Mundo" (1938), para Adhemar Gonzaga da Cinédia; uma versão de ``O ABC de Castro Alves", de Jorge Amado, rebatizado como ``Uma Janela Aberta ...e as Estrelas" (1946).
No final dos anos 40, anunciou-se um novo projeto original de Mário Peixoto: ``Sargaço". Na verdade, não passava de nova versão de ``Maré Baixa". Reescritas e combinadas, se fixariam a partir de 1950 como ``A Alma Segundo Salustre", cuja produção Peixoto tentou levantar até o fim da vida. ``Seria um prazer, o canto do cisne", afirmaria meses antes de morrer. Restou apenas o roteiro, editado em 1981 pela Embrafilme. Um único projeto cinematográfico paralelo Peixoto iria desenvolver neste ``período Salustre". ``Escrevemos juntos", conta Pereira de Mello, ``em 1964, `O Jardim Petrificado -Outono'. É uma adaptação livre e fantasiosa da `Missa do Galo', de Machado de Assis". Também jamais saiu do papel.
O outro gigante da era muda brasileira, Humberto Mauro (1897-1983), teve mais sorte, ainda que dedicando boa parte de suas energias após a chegada do som à produção de curtas educativos. O diretor de ``Ganga Bruta" (1932) não conseguiu girar a manivela a partir de seu roteiro ``A Noiva da Cidade", projeto que acalentou desde o final dos anos 40 até meados dos 70, quando o crítico e realizador bissexto Alex Viany o levou à tela, com Elke Maravilha e Grande Otelo no elenco.
Mauro também acalentou durante anos a idéia de adaptar ``Inocência", do Visconde de Taunay. Lima Barreto (1906-1982), seu contemporâneo, foi mais longe e chegou a escrever um roteiro. Numa homenagem póstuma ao diretor de ``O Cangaceiro" (1952), Walter Lima Jr. transformou em 1982 a letra morta num de seus melhores filmes. A mesma sorte não teve o grande projeto do coração de Barreto: a superprodução ``O Sertanejo", ``a afirmação de uma cultura e de um homem, o maior e melhor filme jamais realizado na América Latina", segundo insistia o cineasta. Pregava no deserto.
Mas é o produtor de Lima Barreto na Vera Cruz, ninguém menos que Alberto Cavalcanti (1897-1982), que conheceu a trajetória mais entrecortada por roteiros abandonados. ``No fundo", desabafou certa vez, ``passei a minha vida a fugir das desgraças". Cavalcanti ultrapassou estoicamente mais de uma dezena de projetos interrompidos. Um deles, o de adaptar na Inglaterra ``Sparkenbroke", de Charles Morgan, deu-lhe o impulso decisivo para aceitar o convite de Assis Chateaubriand e voltar ao Brasil em 1949.
Apesar de viabilizar técnica e humanamente na Vera Cruz uma espécie de Cinecittá tropical, Cavalcanti teve de abandonar vários de seus projetos para o estúdio, como uma versão de Martins Pena (``O Irmão das Almas") e uma cinebiografia de Noel Rosa (``O Escravo da Noite"). Tampouco em sua última fase brasileira, nos anos 70, Cavalcanti conseguiu concretizar seu projeto final, ``O Dr. Judeu", a partir da vida do dramaturgo português Antonio José da Silva.
Não executar o último sonho é dramático, mas frustrar-se já no primeiro pode fulminar vocações. Mas, assim como o estreante Akira Kurosawa soube em 1943 superar o cancelamento da produção de seu ``Neve", Glauber Rocha (1939-1981) driblou em 1957 o batismo frustrado no curta ``Senhor dos Navegantes", escrito com o amigo de juventude Fernando de Rocha Peres. Glauber não demoraria mais do que um ano para finalmente assinar seu primeiro curta, o concretista ``Pátio" (1958).
A biografia de Glauber só parece perder para a de Cavalcanti no número de filmes escritos, esboçados ou interrompidos, sem alcançar a sala dos cinemas.
Depois de lançar ``Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964), Glauber escreve o drama alegórico ``America Nuestra", ``poema épico, representação teatral, comentário, polêmica e política da América Latina". Em 1971, começa e não termina no Chile ``Definição", sobre os exilados brasileiros, numa co-produção da TV Nacional com Renzo Rossellini. Também visando a uma produção italiana, com a RAI, Glauber desenvolve ``La Nascita degli Dei" (O Nascimento dos Deuses), projeto que não vira filme, mas ganha edição em livro (ERI-Edizione Rai, Turim, 1981). Permanecem inéditos ``O Destino da Humanidade" e ``O Testamento da Rainha Louca".
O filme (frustrado) que renasce em livro revelou há cinco anos uma das grandes criações de outro prócer cinemanovista, Joaquim Pedro de Andrade (1932-88). ``O Imponderável Bento Contra o Crioulo Voador" (Marco Zero/Cinemateca Brasileira), uma devastadora fábula política contemporânea, foi merecidamente classificada por seu editor, Carlos Augusto Calil, como ``a ficção mais original criada para o cinema brasileiro no decênio de 80".
A mesma sorte não teve ainda outro roteiro original desenvolvido por Joaquim Pedro imediatamente antes de se dedicar a ``O Imponderável Bento". O ``Mais!" publica (na página ao lado), pela primeira vez, trechos de ``Vida Mansa", comédia de costumes carioca, escrita em 1984, na linha de ``Guerra Conjugal" (1975) e, principalmente, do alegre erotismo de ``Vereda Tropical" (1978). A impossibilidade de concretizar os dois projetos atirou Joaquim Pedro a um desafio ainda maior: revisitar um dos fundadores da sociologia brasileira, Gilberto Freyre, a quem já dedicara um curta de mocidade, ``O Mestre De Apipucos" (1959), numa adaptação livre de seu livro maior, ``Casagrande e Senzala" (leia texto na página ao lado).
À frente de uma grande equipe, o cineasta realizou a partir de julho de 1986 uma gigantesca pesquisa, visitando as regiões centrais do clássico de Freyre, relendo toda a bibliografia básica, levantando minuciosamente os cenários e figurinos de época. O resultado, o roteiro ``Casagrande, Senzala & Cia", ``não tem nada ligado ao livro, só o espírito", diz a cineasta Alice Andrade, filha do diretor e colaboradora próxima do projeto.
``Temos aí um painel grande, que percorre o período que vai de 1500 a 1635", explicou Joaquim Pedro a Edgard Telles Ribeiro em junho de 1987, ainda em meio aos trabalhos de adaptação. ``O roteiro é todo ele baseado em fatos históricos, mas com um tratamento ficcional. A idéia foi colocar em interação os grupos étnicos e políticos que realmente participaram daquela espécie de caldo de cultura com seus confrontos, alianças, guerras, que culminaram na invasão holandesa em Olinda, onde nós encerramos o filme".
Na mesma entrevista, Joaquim Pedro reconhece ``grande dificuldade" para levantar os recursos para essa ``superprodução". O pior se confirmaria: os recursos não aparecem e adia-se indefinidamente ``Casagrande, Senzala & Cia" (``nessa `cia.' vai toda a ênfase que se dá no filme à presença dos índios"). ``Para mim foi isto que matou meu pai", diz hoje Alice Andrade. Atacado por um câncer, Joaquim Pedro viria a morrer ainda em 1988.
Outra revisita cancelada representou frustração marcante e decisiva para o diretor paulista Roberto Santos (1928-1987). Autor da melhor transcriação cinematográfica de Guimarães Rosa com ``A Hora e a Vez de Augusto Matraga" (1965), Santos acalentou por anos o projeto de filmar ``Miguilim", a partir das novelas de ``Manuelzão e Miguilim". A impossibilidade de levantar a produção impeliu-o a rodar outra adaptação, ``Quincas Borba", de Machado de Assis, que acabou sendo seu último e decepcionante filme.
Adaptações literárias tiveram algo de maldito para outro mestre do cinema paulista, Luís Sérgio Person (1936-1976). O diretor de ``O Caso dos Irmãos Naves" (1967) desenvolveu nos 20 anos um roteiro completo a partir de ``Chão Bruto", de Hernâni Donato, visando torná-lo seu filme de estréia. Sem sucesso, vai colaborar em produções alheias e estudar cinema na Itália, antes de consagrar-se já em seu primeiro longa, ``São Paulo S/A" (1964).
O especial sucesso de ``O Caso dos Irmãos Naves" no interior de São Paulo levaria, em 1967, ao convite do produtor Mario Civelli para a realização de um novo filme. O crítico de cinema Jean-Claude Bernardet, parceiro de Person nos roteiros desse período, contou à Folha que resolveram então fazer uma adaptação literária devido à falta de tempo. ``Catei alguns livros e fizemos o roteiro de ``A Hora dos Ruminantes", de J.J. Veiga" (leia trecho abaixo).
Person definiria o filme como ``uma fábula sobre a forma como se estrutura o poder e a atitude passiva que os homens tomam diante da involução histórica. Numa cidadezinha do interior sucedem fatos fantásticos: um bando de homens misteriosos a cerca, pouco depois há uma invasão de animais, os homens da cidade que procuram falar com esses estranhos voltam feitos zumbis".
Tudo pronto, locações escolhidas, o produtor Civelli indeniza Person e cancela sua participação no filme. Person não se resignou. No início dos anos 70, ``O Caso dos Irmãos Naves" recebia aclamação crítica em Nova York. Lá vai Person com o roteiro de ``A Hora dos Ruminantes" embaixo do braço, devidamente traduzido para o inglês, em busca de co-produção. Nada se concretiza. É outra utopia de parceria internacional malograda. Eis outro capítulo não-escrito da história do cinema brasileiro.

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