São Paulo, domingo, 27 de agosto de 1995
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Uma boa dupla de diretores camicase

Sganzerla e Bressane contam como se conheceram nos anos 60

DO ENVIADO ESPECIAL AO RIO

``Em vez de ser um `enfant terrible' (menino rebelde), como eu era considerado, por ser solto na cidade, você era o `enfant gâté' (menino mimado)", conta o catarinense Sganzerla sobre suas impressões de Bressane antes de conhecê-lo pessoalmente. ``Você vinha com a aura do gênio", diz o carioca Bressane.
Em 1966, os dois encontraram-se pela primeira vez em São Paulo. Bressane havia terminado o documentário ``Lima Barreto: Trajetória". Sganzerla filmava ``O Bandido da Luz Vermelha". Bressane visitou o set de filmagens e foi imediatamente atingido pelo impacto do filme.
A amizade, no entanto, só se firmou no Festival de Brasília de 1969, no qual Sganzerla apresentava ``A Mulher de Todos", e Bressane ``O Anjo Nasceu". ``Nós nos entendemos com uma admiração mútua", conta Bressane. Estava inaugurada uma nova fase do cinema brasileiro, cujo primeiro resultado seria a criação da produtora Belair, front criativo do cinema experimental.

Bressane - Quando comecei a fazer cinema, no Rio, você, Rogério, vinha com a aura do gênio e de fato cumpriu essa aura. Era um menino literato, poeta, que havia publicado um livro de poesias com sete anos. Em São Paulo, era o crítico de cinema da visão inovadora, com textos extraordinários.
Sganzerla - Você também era famoso e muito benquisto. Em vez de ser um ``enfant terrible", como eu era considerado, por ser solto na cidade, você era o ``enfant gâté". Essa sua delicadeza encantava. As pessoas ficavam naquela fascinação silenciosa. Quando eu vim ao Rio, nos encontramos na Líder, que era o laboratório de filmes e das idéias, e, ao assistir o copião do seu filme sobre Lima Barreto, achei, ao contrário do meu, interessantíssimo. Vi o seu perfeccionismo. Na época, você repetia 9, 10, 12 vezes cada cena.
Bressane - Era por medo. Godard diz que demorou 20 anos para aprender a fazer cinema e fez o ``Acossado" e aqueles filmes todos. Ele, imagina, disse isso. ``O Bandido da Luz Vermelha" foi um filme transformador para mim; `A Mulher de Todos" ainda mais. Fui às filmagens do ``Bandido", na rua Aurora, no centro de São Paulo. Ao entrar, vejo no set o Paulo Villaça pegar um spray de barba e espirrá-lo assim: ``shuuuu..." Quando vi você filmar aquilo, foi um choque para mim. Eu jamais seria capaz, pela minha sensibilidade, minha formação, pelo meu bloqueio mental. Quando vi aquela liberdade, falei: ``Esse é o maior filme do mundo". E você me chamou e disse assim: ``O que você acha deste plano?". Olhei no visor e fiquei extasiado.
Sganzerla - Eu me lembro. Você falou que o visor teria que ser colocado no nível. Mostrou que conhecia bem aquela prática.
Bressane - É, mas a liberdade daquilo, essa foi a sua contribuição. Foi um impacto muito grande quando vi ``O Bandido da Luz Vermelha". Primeiro, por se tratar de um cinema cultíssimo, o qual, eu, inclusive, compreendia com muita dificuldade, não sabia vê-lo. Eram aqueles clichês que você tirou do cinema americano, aquele tipo de narrativa. O ``Cara a Cara" era um outro lado disso.
Sganzerla - Era o lirismo que já estava na moda. Lirismo vegetal carioca. A influência da chuva. Era toda uma questão de estado de alma, de sensibilidade -e muito atual, porque era uma discussão sobre a alienação de um funcionário público.
Bressane - Mas, olha, perto de ``O Bandido da Luz Vermelha" era uma coisa anacrônica, entendeu? ``Cara a Cara" era muito bem feito, mas era como um rádio de válvula perto de um rádio transistor. ``O Bandido" era uma navalha perto daquilo. E isso foi a coisa. Isso é que é o cinema. Eu também tinha um certo talento para aquilo, mas eu precisei de um outro, como todo mundo, para dar o salto.
O Jakobson dizia o seguinte: o único lugar na terra onde não há propriedade privada é nas artes. Ali tudo se socializa. O resto é hipocrisia. A liberdade do ``Bandido" não existia no meio cinematográfico com o qual eu estava convivendo. Nem o Glauber como cineasta me parecia com tanto talento assim. Nunca imaginei que pudesse sair de São Paulo, daquele lugar ali, um cinema culto. Nunca. E não sairia. Só saiu de você.
Sganzerla - É porque havia uma construção, estava tudo na cabeça mesmo, havia uma boa equipe. Eu julgava que fosse causar impacto, mas ele veio um pouco maior. Para mim também foi a mesma coisa, Julio, a mesma coisa... Eu acho que tem um fator sorte também.
Bressane - Mas você me reservou uma surpresa ainda maior, porque um ano e pouco depois fui ao Festival de Brasília apresentar ``O Anjo Nasceu", e nós, que estávamos distantes na época, nos reencontramos, você com...
Sganzerla - ``A Mulher de Todos".
Bressane - Aí, sim, que é a sorte, o acaso extraordinário e raro, raro mesmo. Eu assisti ``A Mulher de Todos" e operou-se dentro de mim uma transformação, uma metamorfose. Eu considerei, e considero, ``A Mulher de Todos", o maior filme que eu tivesse visto no cinema brasileiro em todos os tempos. Foi irresistível. E aí, sim, esse filme entrou dentro da minha criação.
Vendo ``Matou a Família e Foi ao Cinema" e ``O Anjo Nasceu" dificilmente você reconhecerá o impacto do ``Bandido", embora ele tenha existido, mas em mim mesmo, não na criação, ainda. Quando surge ``A Mulher de Todos" foi devastador. Eu entendi e descobri em mim um território criativo, poético, de expressão. Só coisas essenciais do cinema. Foi um véu de Ísis para mim.
Sganzerla - Eu também sofri um grande impacto com o ``O Anjo Nasceu".
Bressane - ``O Anjo Nasceu" era justo o oposto da ``A Mulher de Todos". ``A Mulher de Todos" tinha um cuidado de mise-en-scène, de enquadramento... É um grande exemplo do que poderia ser um cinema industrial no Brasil. Mas o ``O Anjo Nasceu" era justamente o oposto. Era um filme de uma certa voga dos anos 60, com a fotografia muito granulada, os planos-sequências enormes. Eu nunca imaginei que você, que havia feito ``A Mulher de Todos", pudesse ver um filme como aquele e gostar, mas você gostou muito e veio falar comigo na porta do Hotel Nacional, em Brasília. Eu falei: ``O maior filme do festival é `A Mulher de Todos' ". Você respondeu: ``Não, é `O Anjo Nasceu' ".
Esse encontro foi uma surpresa afetiva. Nós nos entendemos com uma admiração mútua e renovamos o que naquele momento estava completamente desaparecido, que era esse fio de tradição do cinema experimental no Brasil. A Belair foi uma coisa de um entendimento efetivo assim: queríamos aquilo, buscamos aquilo, procuramos dentro do que tínhamos ali. Os seus dois filmes tinham dado dinheiro.
Eu tinha também um dinheiro pessoal, juntamos e fizemos uma coisa que foi, dentro do cinema brasileiro, uma experiência de renovação de uma tradição, que já existia e também pioneira, porque nós fizemos deliberadamente uma escolha, vamos dizer assim, pelo cinema. Fizemos uma escolha camicase. Eu não imaginei que aquele movimento fosse causar tanta influência, como causou depois. Ele influenciou de maneira às vezes irresolvível os realizadores.
Sganzerla - E a produção.
Bressane - O que houve de raro no negócio da Belair, além da coisa de reviver o cinema experimental, foi o fato de ter havido um encontro afetivo, artístico de dois artistas. Isso é raríssimo. Havia um afeto pessoal, mas o que transcendeu e que foi possível esse sonho foi que houve, de fato, um afeto criativo. Houve um afeto pelo objeto criativo. Houve uma mútua consideração e uma mútua antropofagia.
Sganzerla - Temos estilos diametralmente opostos e talvez haja uma complementaridade. Quando eu falei: ``Não, seu filme é melhor, porque ele abre caminhos", foi porque eu pensava que, com ``A Mulher de Todos", eu apenas garantia a possibilidade de ressarcir o empréstimo no banco.
Em São Paulo eu me preocupava mais com essas questões, talvez por ser uma cidade industrial e de eu procurar tornar útil o filme, no sentido da veiculação. E os filmes tinham um bom jogo em relação ao público, embora fossem completamente revolucionários até para esse público.
O seu filme ia além. A própria instantaneidade da produção garantia uma liberdade total e alcançada. Da oposição, veio uma síntese, uma relação de afeto e respeito mútuo. E foi isso que, num certo sentido, o cinema nacional deixou de ter: uma dupla boa, como se tem por exemplo em música, para todo tipo de música.
Bressane - Godard diz que para fazer cinema é preciso duas pessoas, uma com a qual você possa conversar. É isso.
Sganzerla - Exatamente. E dois projetores. Agora, você veja, por exemplo: é como a relação do fotógrafo e o diretor. São sempre dois caras. É o Mário Peixoto e o Edgard Brasil, ou o Edward Tissé e o Eisenstein, ou o Godard e o Raoul Coutard. Eu sempre achei que a amizade era a matéria-prima desse exercício pelo gosto, pelo tesão cinematográfico. Outra pessoa fundamental ali, que é um excelente, talvez o maior, ``metteur-en-scène", foi o Andrea Tonacci, que estava também nesse festival.
Bressane - Sim, veio o ``Bang-Bang", um filme magnífico, uma obra-prima.
Sganzerla - Surgiram mais de cem produções. Muita gente fez e muita gente escondeu depois os filmes, porque não conseguiria se adequar a essa maleabilidade. Foi uma explosão.
Bressane - O cinema brasileiro viveu e vive criativamente muito desse alento. São esses surtos criativos que determinam uma cinematografia. Agora, o que tem de caprichoso, no caso, e raro, é que em todos esses surtos há, na verdade, uma afetividade pessoal, mas, sobretudo, isso é uma coisa ética, moral: você se identifica pelo objeto criativo. A amizade artística voltada...
Sganzerla - Para o trabalho...
Bressane - Para a consciência dele e a sua renovação. É muito difícil que você tenha, mantenha e sustenha uma relação de admiração pelo trabalho de alguém. Você olha para trás e vê a vida... São naufrágios. A amizade, para não virar quadrilha e não virar corriola entre artistas, ela precisa ser realmente muito rigorosa. Nem todo mundo está a fim. Então, um sintoma da vitalidade disso é a permanência da estima. A permanência afetiva é realimentada pela admiração, pelo fascínio. Arte é isso: é esse jogo...
Sganzerla - A alteridade.

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