São Paulo, domingo, 27 de agosto de 1995
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Pente de Vênus

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Não tenho certeza, mas acho que desde Homero garantem que a literatura acabou. Pulando de Homero ao Bill Gates, a morte da letra impressa parece decretada pelo computador. No mundo novo e admirável que está em curso não haverá espaço para a curtição solitária da linguagem, dos mitos e lendas que nos chegaram por meio das palavras. A tecla ``delete" fará o copidesque final dos textos: o que não for vantagem e eficiência dança.
Daí a minha surpresa ao ler o livro de Heloísa Seixas, ``Pente de Vênus". Pelo pouco que sei de sua biografia ainda curta ela tem alguns anos de jornalismo e trabalha atualmente em um escritório das Nações Unidas. Excelente representante de uma geração asséptica, que se desvincula da letra, do verbo.
O que chama a atenção em seus contos é exatamente a linguagem, as letras uma depois da outra formando o universo no qual flutuam nossos pânicos e glórias, nossas frustrações e triunfos. Os contos de Heloísa Seixas têm, como subtítulo, ``Histórias do Amor Assombrado". Um bilhão de supercomputadores interligados não produziriam um único parágrafo de sua ficção -sequer produziria aquela ficção que metaboliza a realidade e, no território da assombração, capta a verdade da condição humana.
Para destacar dois momentos de seu livro de estréia citaria o clima agoniado e culposo do conto ``A Santa Rússia", mistura de Dostoievski e Kafka, o indivíduo massacrado não pela consciência, mas pelo nada que a realidade cria em torno de nós e que, afinal, é tudo porque é o momento.
Há também algumas páginas, no início do conto que dá título ao livro, que poderiam ser misturadas às cenas de praia de Proust, paisagem esbatida de sol, de areia e conchas, de passado e de sombra do passado -um amor realmente assombrado.
Por mais eficiente que seja a linguagem audiovisual, haverá sempre uma Heloísa Seixas para nos revelar o instante da palavra plantada e colhida na solidão e na magia a que temos direito quando assumimos a verdade de nós mesmos.

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