São Paulo, quarta-feira, 6 de setembro de 1995
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Os gays e a visita do papa

LUIZ MOTT

Receberia de braços abertos o presidente da República a visita do chefe supremo de uma importante religião mundial que declarasse "O judaísmo é intrinsecamente mau!"? Qual a reação da população negra frente a um sumo pontífice que tivesse afirmado: "a religião negra constitui depravação grave!"?
Com certeza os protestos e os artigos nos jornais seriam tantos que ou o abusado visitante pediria perdão por seus desatinos ou seria considerado "persona non grata" em nosso país. Jamais Fernando Henrique Cardoso receberia com honras oficiais um fascista confesso.
Lastimavelmente, essa autoridade mundial planeja sua terceira visita ao Brasil -só que, em vez de condenar judeus e negros, as vítimas de sua intolerância são mais de 15 milhões de gays, lésbicas e travestis brasileiros, culpados de um "crime" abominável: são amantes do mesmo sexo.
Eis o que diz o mais moderno catecismo da Igreja Católica publicado no Brasil em 1993: "O homossexualismo constitui depravação grave. Os atos homossexuais são intrinsecamente maus". A única solução para os homossexuais é a castidade, ou fazer como o teólogo Orígenes, nos primeiros séculos do cristianismo, que praticou a autocastração.
Nem mudar de sexo a igreja aceita, apesar de o Congresso Nacional estar em vias de aprovar a legalização das operações transexuais -aliás como aprovou a lei do divórcio, também boicotada pelo Vaticano.
O porta-voz da próxima visita de João Paulo 2º ao Brasil, prevista para finais de 1997, é d. Eugênio Sales, o corifeu da tropa de choque dos conservadores da Igreja Católica. O mesmo cardeal do Rio de Janeiro que usa a mídia para diagnosticar a Aids como chicote de Deus contra a revolução sexual e que desacreditou os depoimentos de um padre e de uma freira quando denunciaram marcas de tortura dentro de uma igreja na invasão de um morro carioca pelo Exército.
Em seu recente artigo "O fardo do homossexualismo", o cardeal assume o anacrônico machismo de seu Nordeste de origem, puxando a orelha da imprensa por ter dado destaque à 17ª Conferência da Associação Gay e Lésbica Internacional (Rio, junho/95), protestando agora pela presença de um casal gay em uma telenovela, a primeira vez que a mídia dá um tratamento digno ao "amor que não ousava dizer o nome". Diz o cardeal: "Uma visão nítida do homossexualismo nos leva a reconhecer seu aspecto gravemente negativo. Jamais poderemos aprová-lo. Será sempre um fardo, como um defeito físico".
Infelizmente a condenação vergonhosa de Galileu, há 300 anos, ainda não foi suficiente para que a Santa Madre Igreja aceite a revelação que o Espírito Santo faz por meio dos diferentes ramos da ciência, que unanimemente comprovam ser um erro e falta de humanidade classificar a homossexualidade como depravação, intrinsecamente má ou defeito físico.
Não foi o próprio Cristo quem disse: "Muitas coisas ainda tenho a dizer-vos mas não as podeis suportar agora. Quando vier o Espírito da Verdade ensinar-vos-á a verdade" (João, 16:12). Não é uma verdade incontestável hoje que as mulheres devem ser tratadas com os mesmos direitos que os varões, realidade impensável no tempo do Cristo? Quem está certo: a Santa Inquisição, que teima em rotular o homossexualismo de defeito físico, ou a Organização Mundial de Saúde e o Conselho Federal de Medicina, que garantem que nada distingue, em termos de normalidade, um hetero de um homossexual?
E, do mesmo modo como a sociedade brasileira se abre cada vez mais ao pluralismo racial e cultural, aceitando judeus e negros, protestantes e comunistas como brasileiros com os mesmos direitos de cidadania, pesquisas revelam que lamentavelmente os chefes da Igreja Católica continuam distantes do povo ao considerar como pecado mortal o uso da camisinha, a pílula e o amor entre pessoas do mesmo sexo.
Plebiscitos foram realizados no fim de agosto pelo Grupo Gay da Bahia e pelo Grupo Dignidade do Paraná -englobando um total de 3.129 respostas à pergunta: "Você é a favor ou contra que o casal gay da novela das 8h continue junto?".
em Salvador, 65% dos entrevistados apoiaram o casal homossexual, enquanto em Curitiba chegaram a 74,5% os que concordaram com o amor entre Jefferson e Sandro. Os paranaenses foram ainda mais modernos: 77,3% acharam que o gay negro, que está em dúvida quanto à sua orientação sexual, deveria mesmo assumir seu homoerotismo.
Na Bahia, as mulheres (68%) demonstraram maior aceitação à liberdade homossexual do que os homens (62%), sendo que as universitárias e mulheres entre 21 e 30 anos constituem o grupo mais tolerante: 76% discordam do papa e do cardeal quando rotulam o amor unissexual como intrinsecamente mau ou defeito físico.
Assim sendo, a visita de um chefe religioso e as declarações de seu cardeal porta-voz, jogando lenha na fogueira do preconceito contra mais de 10% de nossa população, são uma afronta à nossa Carta Magna, que estabelece, entre os objetivos fundamentais da República, "erradicar e reduzir as desigualdades sociais e promover o bem de todos, sem preconceitos e quaisquer formas de discriminação" (art. 3º).
Neste momento, em que o governo e todo nosso povo se mobilizam para consagrar Zumbi dos Palmares como símbolo nacional da luta contra a opressão, é mister que o direito de plena cidadania seja estendido não apenas aos negros, judeus, mulheres e índios, mas também aos homossexuais, pois não é justo que só o racismo seja crime inafiançável, enquanto gays e lésbicas continuam a ser insultados como doentes e intrinsecamente maus.
Afinal, seria bem-vindo entre nós um representante de Deus que pede perdão aos negros e judeus, mas que continua pregando o preconceito e a discriminação contra mulheres e homossexuais?
Numa época em que até em países ultraconservadores, como Hungria e Eslovênia, já se legalizou o contrato de união civil entre pessoas do mesmo sexo, em que a deputada Marta Suplicy já obteve adesão de mais de uma centena de parlamentares para incluir na Constituição Federal a expressa proibição de discriminação baseada na orientação sexual, a criação no Rio de Janeiro de um farisaico Grupo de Amigos para "curar" homossexuais é um crime tão hediondo quanto o racismo, pois nega aos gays e lésbicas o direito inalienável à sua identidade existencial.

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