São Paulo, domingo, 17 de setembro de 1995
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Freud invade Marx na colagem metapolítica do programa do PT

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Entusiasmante. Um brilho, uma estrela solitária, um choque de Maiakóvski e Godard no PT. O programa de propaganda obrigatória do PT anteontem deu um show de bola na TV. Há muito tempo não vejo uma coisa tão inteligente na política brasileira.
Depois do período Collor, fomos corrompidos pela vasta oferta de escândalos. Era fácil ser moralista depois de tanta lama. Era fácil ser progressista. Bastavam a crítica e o rancor.
A pureza também corrompe, a santidade pode emburrecer. Agora, algo mudou. O programa do PT-TV foi uma grande colagem metapolítica sobre o país e auto-irônica sobre o partido.
Sinto que um ar novo pode estar chegando ao PT, depois desse programa. Já havia indícios, além dos eternos inteligentes como Paulo Delgado, Genoino, Suplicy, Buaiz, Cristovam.
Um dos primeiros indícios foi o recente artigo de Tarso Genro. Ótima autocrítica em busca de um caminho. Vejo o PT arriscando-se a não ter certezas, não se bastando apenas pela consciência "limpa". Outro grande toque foi o excepcional artigo de jornal desta mulher de linda aura e coragem que é Marina Silva, a senadora seringueira, treinada na prática do mato, vacinada contra lero-leros.
Depois, tivemos o maravilhoso desmaio louco de Cesar Benjamim num estertor final de sectarismo místico, num agudo dó de peito contra José Dirceu em lágrimas, como uma Maria Callas radical, como Madre dos Anjos contra estupradores do convento. As lágrimas e o grito foram a ruptura da censura, a explosão da negação da emoção. PT humanizado pelos uivos e lágrimas. O novo. PT-psíquico. Freud invade Marx, finalmente. Inconsciente e história.
O PT parece ter se incluído na Dúvida. E fez um clipe genial contra a miséria e a injustiça, dentro da melhor tradição do cinema moderno, contra o falso psicodelismo bastardo da moda pós-pós reacionária. O PT perdeu aquele ranço bodeado, rancoroso, de "vítimas de injustiça" e jogou para fora uma atitude afirmativa e crítica do mundo, onde ele próprio se inclui como perplexo.
Venceu a tendência LEF contra o Proletkult. Quem dentro do PT terá odiado o programa? Quem serão os Zdanovs de hoje? Acabam (parece ao menos) o PT-vítima, o PT-injustiçado, os tristes netinhos da revolução, o PT de catecismo, o PT careta. Havia no ar o jeito novo e revolucionário que Lula tinha no ABC, quando surgiu e não queria papo com intelectuais que buscavam uma casquinha na santidade operária para diminuir sua culpa de inúteis.
Aliás, outro claro indício de renovação foi o Lula emagrecer. Um novo regime para o PT, enxugamento de gorduras, de sebo, queima de untos.
Acabou a ressaca de Lula, depois do bode da derrota para FHC, o intelectual que se alimentou muito de sua vanguarda em 78. Não haveria o PSDB sem o primeiro Lula no ABC.
Pena de quem não viu o programa do PT. O elenco de atores era nosso melhor: a turma do "supporting cast", muito melhores que os galãs babacas: os cômicos. Pedro Cardoso, Cristina Pereira, Paulo Betti, tantos.
Outro indício do Novo: a coordenação de Antonio Grassi, o petista erótico que namorou Lilibeth, a ex do ex. Grassi foi, portanto, "comborço" crítico de Collor. (Vejam o que é "comborço" no Aurélio ou em "D. Casmurro". Escobar foi comborço de Bentinho.) A trama gráfica é de Luiz Stein, que fez um novo rio conceitual rolar em todas as TVs, culminando com os momentos mais arrasadores dos últimos tempos da imaginação brasileira: cinco minutos com todos os canais fora do ar e uma frase avisando: "Tente mudar de canal. Não adianta mudar de canal". De repente, toda nossa solidão ficou clara, sem a TV. Como estamos abandonados sem nosso álibi virtual, como fica triste e terrível a noite brasileira sem imagem. Fica evidente nossa miséria. Ficamos sozinhos olhando-nos para dentro.
PT também é arte. O programa do PT foi o filme brasileiro mais instigante dos últimos tempos. A partir das certezas mortas, começam uma nova estética e uma nova política diante da miséria. Temos de fazer a desconstrução das certezas em voltas de nossa única certeza: a miséria. Só da miséria contemplada em dúvida nascerá uma nova forma de luta. Os pobres mostrarão o caminho.
Foi uma bela alternativa emergencial e imediata contra a frieza social do Governo. Primeira grande crítica ao PSDB. Coragem e imaginação, quentura e frieza, paixão e técnica, é tudo de que precisamos. Lula disse: "Demos este programa do PT para os artistas fazerem, porque eles lançam a dúvida no mundo, para que certezas possam ser pensadas." Não são os artistas que precisam do PT. O PT é que precisa de artistas.

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