São Paulo, domingo, 17 de setembro de 1995
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Duas lições dos antípodas

ROBERTO CAMPOS

"Não me incomodem. Estou muito ocupado preparando o meu próximo erro"
(Bertolt Brecht)

Disse que os governantes devem estudar as lições da história para não repetir-lhe os erros. O problema é que os que governam não têm tempo para meditação do passado, e os que entendem muito do passado raramente têm agilidade para administrar o presente. Nada mais fácil, e inútil, do que sabedoria após o fato...
Façamos um exercício de sabedoria retrospectiva em torno de dois eventos contemporâneos: o colapso do México e o avanço sustentado dos asiáticos. São duas lições de continentes antípodas.
No México houve duas desilusões. O ingresso no Nafta não representou um passaporte de ingresso no Primeiro Mundo. As instituições são obsoletas e a modernização econômica, conquanto substancial, foi ainda insuficiente. A segunda desilusão é com o mito do tecnocrata iluminado. A sofisticação intelectual da tecnocracia mexicana era mundialmente admirada. Mas claramente os tecnocratas subestimaram o impacto da crise política como destruidora de confiança e a debilidade criada pela queda substancial da poupança interna desde 1988.
É natural que os países em desenvolvimento tenham déficits na conta corrente do balanço de pagamentos. Mas a América Latina é até certo ponto refém do passado. Nossa tradição de moratória e calote faz com que déficits da ordem de 6% a 8% do PIB ao ano provoquem crises cambiais, enquanto que vários países asiáticos encontram tranquilo financiamento internacional para déficits de igual magnitude. O Brasil tem que manter suas barbas de molho, pois ao tempo do Plano Cruzado defendíamos a moratória unilateral como sinal de soberania e machismo. E o reescalonamento de dívidas é encarado como rotina elegante, não só na dívida externa como na interna. (Os Estados estão reclamando agora um quinto reescalonamento de seus débitos, já renegociados em 1987, 89, 93 e 94).
A crise mexicana sublinhou o problema da volatilidade dos capitais açulada pela globalização financeira. No caso mexicano, há dois aspectos a ressaltar. Apenas 1/5 dos capitais que entraram no país após o Nafta eram investimentos permanentes em equipamentos e instalações. O resto foi capital de curto prazo que financiou a rolagem da dívida do Tesouro e um "boom" de consumo privado. O Brasil sofre em menor escala do mesmo problema. Esse panorama poderia ser melhorado com a privatização dos dinossauros estatais, que estimularia os investidores a internarem capital como acionistas, e não meramente como compradores de títulos de renda fixa, seduzidos pelos altos juros. Quando se fala de capital volátil, pensa-se habitualmente no capital estrangeiro. Entretanto, os campeões da volatilidade foram os capitais mexicanos repatriados. Estima-se que no "dezembro negro" do ano passado (o pânico começou em 30 de novembro e o colapso do peso ocorreu em 20 de dezembro), quando as reservas declinaram em US$ 6,7 bilhões, apenas 5,5% do declínio podem ser atribuídos à retirada de capitais estrangeiros. O déficit comercial explicou 25% das perdas. Assim, 70% da fuga de capitais representaram desinvestimento dos próprios mexicanos. Na realidade, o sofisticado capital estrangeiro foi surpreendentemente lerdo, e só em fevereiro de 1995 começou a se retirar maciçamente. Naturalmente os mexicanos tinham percepção mais aguda da crise do sistema político e sentiam mais de perto as consequências da sobrevalorização cambial do peso, excessivamente estimulante do consumo e importações.
A lição dessa fábula é que em vez de perdermos tempo pregando reformas no sistema financeiro internacional para reduzir a volatilidade dos capitais, o que nossos países têm de fazer é aumentar a confiança de seus próprios cidadãos, dando estabilidade às regras do jogo e reduzindo a tributação sobre os investidores.
Nesse sentido, o governo, ao pretender tributar em 15% os investidores estrangeiros nas Bolsas, pode aumentar a volatilidade dos capitais. A intenção é equalizar o tratamento fiscal do capital de não residentes com o tratamento aos investidores locais. Nada mais justo que essa isonomia. Mas ela pode ser alcançada isentando-se os nacionais, que hoje sofrem uma dupla tributação, de vez que o valor das ações reflete o valor descontado do rendimento das empresas, já tributados na pessoa jurídica. O efeito líquido da nova tributação seria desestimular as Bolsas brasileiras, que se tornariam menos atraentes, comparativamente aos recibos de depósitos de ações, negociados em Nova York. A vantagem de uma pequena receita adicional para o Tesouro seria anulada por uma desaceleração global no movimento das Bolsas, fonte de capitalização mais barata que os juros domésticos.
Mais importantes ainda que as lições negativas do México são as lições positivas do sucesso asiático. A deterioração de nosso desempenho comparativamente aos asiáticos, é visível no quadro abaixo. Tomado o crescimento do PIB real de 1970 como ano base, verificamos que começamos a perder terreno ao longo da década 70, mas só nos inferiorizamos dramaticamente na década dos 80 e começo dos 90. Entre 1970 e 1994, a Coréia do Sul cresceu por um fator de 7,4, Taiwan (6,7), Cingapura (6,2), Hong Kong (5,7), Malásia (5,3), enquanto o Brasil crescia apenas 3 vezes.
Os erros começaram na década dos 70, com um inadequado ajuste às duas crises do petróleo. Dos quatro métodos possíveis de ajuste do balanço de pagamentos -redução temporária do crescimento interno, priorização das exportações, substituição de importações e endividamento externo- o Brasil enfatizou os dois últimos e os asiáticos os dois primeiros.
A década dos 80 foi um magnífico festival de erros. O mais grave talvez tenha sido o da política de informática de 1984, que desmodernizou nossa indústria e afugentou investidores de alta tecnologia. Vieram logo depois, em curta sucessão, o Plano Cruzado, o calote da dívida externa, a Constituição besteirol de 1988 e o confisco do Plano Collor. Essa procissão de demônios tornou-nos especialistas ímpares na tecnologia do retrocesso...
O Plano Real significa uma reconciliação, ainda que hesitante, com o bom-senso. Mas nossa transformação cultural está longe de ser completa. Não é certo que tenhamos aprendido que recursos naturais não são riquezas e sim cadáveres geológicos. Admitimos a falência do Estado, mas não deduzimos sua consequência lógica: privatização maciça e acelerada. É pertinente a piada do Steve Savas, professor de City University of New York, segundo a qual o Brasil e Turquia são os países que mais falam de privatização e que menos privatizam...
Agora assistimos a um patético esforço de nossas esquerdas para revitalizar a clivagem entre esquerda e direita, que a queda do muro de Berlim tornou obsoleta. A única clivagem real remanescente, é entre liberais, que acreditam na economia de mercado, e dirigistas, que se apegam ao mito do Estado benfeitor. O movimento chamado de Esquerda 21 é um experimento tão excitante como o do engenheiro ferroviário que planeja fervorosamente a descoberta da locomotiva a vapor mais moderna...

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