São Paulo, domingo, 17 de setembro de 1995
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Balé mecânico na era eletrônica

AUGUSTO DE CAMPOS

representação mimética, mas como "nova computação da matemática da harmonia"), o conceito de "espaço-tempo musical e a exploração do caráter percussivo do piano. Destaco, a seguir, algumas passagens, que se revelam extraordinariamente instigantes em relação aos posteriores desenvolvimentos da música moderna:
Sobre a "machine music: "Antheil é provavelmente o primeiro artista a usar máquinas -máquinas modernas, sem sentimentalismo. "As máquinas não são realmente literárias ou poéticas, qualquer tentativa de poetizar as máquinas é tolice. "As máquinas são musicais. Duvido que elas sejam sequer muito pictóricas ou esculturais, elas têm forma, mas o seu traço distintivo não está na forma e sim no seu movimento e energia; reduzidas à condição estática perdem raison d'être, como que a sua essência. "O homem mecânico da ficção futurista não passa de uma pastoral falsa, não pode preencher a literatura mais do que o homem bucólico. "Entendo que a música é a arte mais apropriada para exprimir a refinada qualidade das máquinas. As máquinas agora fazem parte da vida e é natural que os homens devam sentir algo a respeito delas; haveria alguma coisa de errado com a arte se ela não pudesse lidar com esse novo tema. "Três anos atrás Antheil falava meio vagamente em 'entoar' cidades inteiras, em 'silêncios de 20 minutos na forma' etc. Pensava-se que era mera especulação, ou especulação 'pura'. Agora, depois dos três anos, não me arrependo nem um pouco de qualquer comparação que eu tenha feito entre Antheil e Stravinski em favor do primeiro. Com a performance do 'Ballet Mécanique' pode-se conceber a possibilidade de organizar os sons de uma fábrica, digamos de uma chapa para caldeiras ou de qualquer outro ruído estridente, os sons reais do trabalho e, no entanto, com tais pausas e durações que, ao fim das oito horas, os trabalhadores não saiam com os nervos esfrangalhados mas estimulados -fatigados mas estimulados. "A 'Sacré' permanece, mas seus cubos, por mais sólidos que sejam, estão para o 'Ballet Mécanique' como a arquitetura para o planejamento urbano.
Sobre "espaço-tempo: "Antheil é extremamente sensível à existência da música no espaço-tempo. O uso do termo 'quarta dimensão' é provavelmente tão confuso em Einstein como em Antheil. Penso que Einstein concebe o fator tempo como afetando as relações de espaço. "Assim como Picasso e Lewis e Brancusi nos tornam cada vez mais conscientes da forma, da combinação da forma ou dos precisos limites e demarcações de formas planas e de volumes, assim Antheil está fazendo seus ouvintes cada vez mais conscientes do espaço-tempo, das divisões de espaço-tempo". (A propósito da "Terceira Sonata para Violino e Piano") (3): "...via Stravinski e Antheil, e possivelmente algum outro compositor, somos levados a uma concepção mais imediata do tempo, uma batida mais rápida, uma apreensão mais aguda ou, digamos, uma 'decomposição' do átomo musical.
Sobre o uso percussivo do piano: "Antheil expurgou o piano, transformou-o num instrumento musical respeitável, reconhecendo sua natureza percussiva. "Há o uso do piano, não mais melódico ou cantabile, mas sólido, unificado como um único tambor. Refiro-me a sons únicos produzidos por múltiplo impacto, diferentes de acordes, que são espécies de encadeamentos ou pastas de som."
Sobre o "Ballet Mécanique": "...esta obra tira definitivamente a música da sala de concertos. "Tecnicamente, o fato é que o Sr. Antheil usou durações mais longas do que qualquer outro compositor jamais tentou usar... durações muito mais longas. Vivendo na Europa, mais em Rapallo que em Paris, Pound, obviamente, não conhecia as primeiras experiências de "clusters pianísticos de Charles Ives ou de Henry Cowell, na América, ou mesmo as aventuras percussivas de Varèse, que para lá partira desde 1915. Varèse estreou "Amériques" na Filadélfia, em 9 de abril de 1926. Em Paris, por um breve período naquele ano (agosto a dezembro), deixou por pouco de assistir à "première do "Ballet Mécanique" no Théâtre des Champs Élysées (junho de 1926). Curioso desencontro de sirenes e de músicos...
O próprio Antheil, cujos escritos musicais, que eu saiba, não foram ainda compilados, procurou, em mais de uma oportunidade, justificar a seriedade do seu trabalho: "O 'Ballet Mécanique': aqui eu parei. Aqui era a linha divisória, a beira do precipício. Aqui, na parte final desta composição, onde em longas passagens nem um único som acontece e o próprio tempo age como música; aqui estava a mais extrema realização da minha poesia; aqui eu tinha o tempo se movendo sem que eu tocasse nele (carta a Ezra Pound, abril de 1927). "Pessoalmente, penso que o 'Ballet Mécanique' teve importância num ponto, e que foi concebido sob uma forma nova, que consistia em preencher certa tela temporal com abstrações musicais e materiais sonoros compostos e contrastados entre si, pensando mais em valores temporais que em valores tonais... No 'Ballet Mécanique', usei o tempo como Picasso poderia ter usado os espaços vazios das suas telas... Não hesitei, por exemplo, em repetir um compasso uma centena de vezes; não hesitei em não ter absolutamente nada nos rolos do meu piano por 62 compassos; não hesitei em tocar um sino contra determinada seção de tempo ou fazer o que quisesse com a tela de tempo desde que cada parte dela contraditasse a outra... Minhas idéias eram as mais abstratas entre as abstratas -de uma carta de 1936 a Nicolas Slonimski, citada por Maurice Peress e por Gilbert Chase, que comenta: "Se essa interpretação é correta, Antheil deve ser considerado precursor dos 'Compositores Abstratos do período de após Segunda Guerra', como John Cage e Morton Feldman, os quais têm feito experiências com conceitos de espaço-tempo em música. Antheil escreveu muitos artigos sobre esse assunto, em periódicos de vanguarda que apareceram de 1920 a 1930: 'De Stijl' (Rotterdam, 1924-1925), 'Transition' (Paris, 1925) e 'The Little Review' (1925).
Num estudo de 1952, a propósito de Cage e do tema do silêncio em sua obra, Henry Cowell registra: "Enquanto eu estava escrevendo este artigo, George Antheil chamou a minha atenção para a partitura de seu 'Ballet Mécanique', que tem uma seção em que compassos silenciosos de 8/8 aparecem periodicamente. Isto foi escrito em 1924 e suas idéias básicas derivaram de longas sessões com George Herzog em Berlim, ouvindo gravações de música da Índia, da China e de culturas mais primitivas. Por essa época Antheil se interessou pelo conceito de espaço-tempo e música em tempo absoluto; o livro de Ezra Pound sobre Antheil contém um relato dessas teorias.
Do lado oposto, o crítico inglês Wilfred Mellers (citado por Ned Rorem no capítulo "O Músico Ezra Pound do seu livro "Música e Gente", 1968): "...Antheil alega que (o 'Ballet Mécanique') foi composto matematicamente como conceito tempo-espaço, como engenharia musical ou arquitetura moderna sonora. Ele admite que Varèse o precedeu nesse conceito. De qualquer modo, comparado com as obras de Stravinski e Varèse, o "Ballet Mécanique" tem apenas interesse histórico, e não musical... Ele utilizou as durações aritméticas do silêncio, já em 1924, parcialmente em consequência de ter estudado a música oriental... Não obstante, os ritmos principais da obra relacionam-se à música acidental e ela não convence muito como conceito de espaço-tempo. Ou o americano Peter Yates, também citado por Ned Rorem, que acha a obra superficial, impugnando algumas inovações como os vários pianos, "tomados de empréstimo do emprego muito mais bem sucedido dado a eles por Stravinski em 'Les Noces', e a hélice do avião, que proviria do moinho de vento do 'Don Quixote', de Richard Strauss.
Os argumentos de precedência -ampliados por outros críticos aos futuristas e a Erik Satie ("Parade")- parecem-me insuficientes para amparar esse "negative approach". O futurista Russolo antecedeu a todos, mas quem ouviu os seus "intonarumori (4)? A mais ponderável influência -a de Stravinski- é indiscutível, e o próprio Antheil a reconhece ("Ele foi meu herói... Eu venerava o cérebro que tinha concebido a colossal 'Sacre' que abalou o mundo). Mas ecos de Stravinski se ouvem também em Bartok, em Varèse, em Nancarrow, em Messiaen, em Villa-Lobos e muitos outros sem que se lhes recuse identidade própria ou se invalide a sua música. De resto, como dissera Ezra Pound no seu jargão provocativo: " 'Noces' cai aos pedaços. Depois do 'Ballet' soa como alguns fragmentos de Wagner, um coral russo (bastante bom), alguns fragmentos de Chopin, algumas notas agudas 'pianolísticas'. Tecnicamente, o Sr. Antheil descobriu a Pleyela, e libertou-a da ignomínia, agora é um instrumento, não um mísero macaqueador do piano.
O fato é que Antheil catalizou e potencializou as experiências com ruídos e silêncios dos seus antecessores, numa fase em que Stravinski, em declínio criativo, já trafegava pelos caminhos restauradores do neoclassicismo. Nem a precedência, que também poderia ser invocada neste contexto, do "Étude for Pianola", de Stravinski, estreado em Londres em 1921, é de grande valia, pois esse ligeiro "capricho espanhol do inquieto mestre russo soa com um "divertissement", um realejo erudito, nas antípodas do brutalismo timbrístico e da radicalidade percussiva da peça de Antheil.
Em 1926, Antheil foi considerado "inquestionavelmente o primeiro compositor da nossa geração por Virgil Thomson, que com ele participou de concertos em Paris. Quarenta anos mais tarde, Thomson retificou parte desse elogio, dizendo que "a avaliação que fizera dele poderia ter-se justificado se não se verificasse depois que, apesar de toda a sua facilidade e ambição, não havia nele o poder de crescer. O 'jovem mau da música' cresceu apenas para se tornar um bom rapaz. E o 'Ballet Mécanique', escrito antes de ele completar 25 anos, permanece a sua obra mais original. Deve-se lembrar que Thomson, embora tenha dado boa demonstração de "fair play ao aplaudir a ópera de Pound (5) -a que assistiu, em Paris, também em 1926-, tornara-se um adversário do poeta e do músico, desde que passou a orbitar em torno de Gertrude Stein, a quem fora apresentado por Antheil, e cujos textos utilizou em "Capital Capitals", "Four Saints in Three Acts" e "The Mother of Us All".

Continua à pág. 5-10

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