São Paulo, domingo, 17 de setembro de 1995
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DOCTOROW LÊ A MORAL

E.L. DOCTOROW
ESPECIAL PARA "THE NEW YORKER"

Não há como saber algo de Huck Finn sem ler um livro de nome "As Aventuras de Tom Sawyer". Nessa primeira recriação do passado, Mark Twain rememora a cidade de Hannibal (Missouri) na década de 1840 como um verão perpétuo, no qual duas formas de vida distintas e docemente irreconciliáveis, a Criança e o Adulto, levam adiante seus destinos cômicos. As aventuras de Tom acabam em triunfo, e o jovem leitor sai com a certeza subtextual de que, afinal de contas, há um elo que une jovens e adultos num único mundo moral, no qual a verdade reina e o perdão é sempre possível.
O jovem leitor? Twain não tinha a menor idéia de estar escrevendo um livro para crianças -sua meta era um romance adulto. Escreveu por capricho, sem plano, entregando-se totalmente aos prazeres da improvisação e da música que encontrava na fala cotidiana. Afinal, Twain foi um humorista de teatro muito antes de se tornar uma figura literária; foi colega de Petroleum V. Nasby e Artemus Ward antes de ser vizinho de Harriet Beecher Stowe em Hartford e convidado de Emerson e Oliver Wendell Holmes na Nova Inglaterra.
Mas Twain certamente acabou por entender que, com toda a sua comédia efusiva, o livro era demasiado sentimental, leniente demais face ao rincão racista que lhe servira de inspiração. Twain havia deixado de lado a escravidão, e, feitas as contas, seu Tom Sawyer era um centrista, um meio-rebelde que, tal como seu autor, fora acolhido no seio da sociedade dominante contra a qual investia.
Veio então o grande momento da história literária norte-americana, quando seu olhar se voltou para o garoto ao lado de Tom.
Em "Huckleberry Finn", Twain liberta-se da tirania do tom teatral, do tom de tolerância bem-humorada em que havia escrito até então, e entrega a narrativa a Huck, o companheiro inseparável, sujismundo e incorrigível de Tom. Huck fala como uma criança e comete atos infantis. Mas, nessa recriação do passado, a visão do Sul logo antes da guerra é tudo menos idílica. Não encontramos adultos gentis tolerando as estripulias dos filhos, mas sim assassinos, vigaristas, bêbados e ladrões. Enquanto Tom Sawyer se esconde em Jackson's Island porque Becky Thatcher, sua namoradinha, o rejeitara, Huck foge desesperado para o mesmo lugar, a fim de escapar dos abusos do pai alcoólatra, que o ameaçara de morte.
Huck junta-se a Jim, escravo fugido de Miss Watson, e suas aventuras numa balsa ao longo do Mississipi são uma variante da narrativa sobre escravos. E aqui está a genialidade da voz da criança: ao fazer a escolha socialmente imoral de fugir com um escravo -que, por direito, é propriedade alheia-, Huck cria para si mesmo uma moral superior, que define como fora-da-lei e, portanto, muito apropriada a um vagabundo imprestável como ele. E Twain pode assim lidar com a monstruosa catástrofe nacional da escravidão sem empinar o nariz virtuoso, como faz Harriet Beecher Stowe, e sim com a arma mais afiada e penetrante da ironia.
Mais que tudo, Huck e Jim querem sobreviver: viajam à noite, escondem-se nas margens de dia, enfrentam tempestades e colisões com barcos a vapor, tudo para levar Jim à liberdade. Ao contrário de Tom Sawyer, aqui a civilização não é simplesmente uma questão de ter o pescoço lavado e esfregado por uma tia solteira e empertigada. Civilização aqui significa comprar e vender pessoas, para então fazê-las trabalhar até a morte; a civilização é uma terrível série de trapaças executadas às custas da ignorância provinciana. Huck, esperto e engenhoso, mostra ser um mestre dos truques e lorotas, ao estilo de Sawyer, quando confronta os adultos traiçoeiros que habitam as cidades ao longo do rio.
Acontece então algo de terrível -para Huck e para a literatura americana. A narrativa passa do rio à terra firme, Jim é capturado e Twain traz Tom Sawyer de volta à cena. Ainda que o centro moral do livro seja Huck -na qualidade de protetor de Jim, é ele quem sofre a crise da consciência nacional-, cabe a Tom orquestrar a fuga final da fazenda dos Phelps. Huck, que até então nos emprestara seus olhos e sua voz, volta para o papel de companheiro de Tom, enquanto o livro descamba para a tolice, encenando sem muita plausibilidade o absurdo e rocambolesco plano de fuga de Sawyer. E, para tornar tudo completamente sem sentido, ficamos sabendo que Jim já fora legalmente libertado no testamento de Miss Watson -como Tom sabia o tempo todo.
A maior história picaresca desde Cervantes e Diderot degenera numa sequência vacilante de números cômicos. Conforme o seu hábito de deixar que o livro se escrevesse por si só, Twain parou de trabalhar em Huckleberry Finn, para retomá-lo alguns anos depois, devolvê-lo à gaveta por alguns anos mais e finalmente terminá-lo e publicá-lo oito anos e muitos livros depois de tê-lo começado. Em algum momento do percurso, perdeu a determinação ou o rumo, confiando erroneamente que seus velhos truques de teatro -o garoto traquinas e suas pilhérias- viriam resgatá-lo. Mas eles parecem de mau gosto no mundo real de Huck e Jim e, com a vida deste último por um fio, cruelmente inadequados.
Enquanto sulista reformado, Twain era um repositório de todas as contradições de sua sociedade. Os livros de Tom e Huck são visões contrastantes de um mesmo passado, e uma delas -a errada- acaba por prevalecer. O mesmo fator que fez Twain frustrar sua obra-prima gera seu mais problemático enigma moral -a figura de Jim. Twain adorava a fala dialetal, tinha ouvido para ela e recriava-a facilmente, de modo que, enquanto Huck Finn se bate contra a moral branca de seu tempo a fim de ajudar o negro a escapar da escravidão, seu progenitor literário adota a voz de comediante e apresenta Jim como um criançola crédulo, conduzido por um garoto branco. A ironia nem sempre é redentora.

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