São Paulo, domingo, 17 de setembro de 1995 |
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DOCTOROW LÊ A MORAL
E.L. DOCTOROW
O jovem leitor? Twain não tinha a menor idéia de estar escrevendo um livro para crianças -sua meta era um romance adulto. Escreveu por capricho, sem plano, entregando-se totalmente aos prazeres da improvisação e da música que encontrava na fala cotidiana. Afinal, Twain foi um humorista de teatro muito antes de se tornar uma figura literária; foi colega de Petroleum V. Nasby e Artemus Ward antes de ser vizinho de Harriet Beecher Stowe em Hartford e convidado de Emerson e Oliver Wendell Holmes na Nova Inglaterra. Mas Twain certamente acabou por entender que, com toda a sua comédia efusiva, o livro era demasiado sentimental, leniente demais face ao rincão racista que lhe servira de inspiração. Twain havia deixado de lado a escravidão, e, feitas as contas, seu Tom Sawyer era um centrista, um meio-rebelde que, tal como seu autor, fora acolhido no seio da sociedade dominante contra a qual investia. Veio então o grande momento da história literária norte-americana, quando seu olhar se voltou para o garoto ao lado de Tom. Em "Huckleberry Finn", Twain liberta-se da tirania do tom teatral, do tom de tolerância bem-humorada em que havia escrito até então, e entrega a narrativa a Huck, o companheiro inseparável, sujismundo e incorrigível de Tom. Huck fala como uma criança e comete atos infantis. Mas, nessa recriação do passado, a visão do Sul logo antes da guerra é tudo menos idílica. Não encontramos adultos gentis tolerando as estripulias dos filhos, mas sim assassinos, vigaristas, bêbados e ladrões. Enquanto Tom Sawyer se esconde em Jackson's Island porque Becky Thatcher, sua namoradinha, o rejeitara, Huck foge desesperado para o mesmo lugar, a fim de escapar dos abusos do pai alcoólatra, que o ameaçara de morte. Huck junta-se a Jim, escravo fugido de Miss Watson, e suas aventuras numa balsa ao longo do Mississipi são uma variante da narrativa sobre escravos. E aqui está a genialidade da voz da criança: ao fazer a escolha socialmente imoral de fugir com um escravo -que, por direito, é propriedade alheia-, Huck cria para si mesmo uma moral superior, que define como fora-da-lei e, portanto, muito apropriada a um vagabundo imprestável como ele. E Twain pode assim lidar com a monstruosa catástrofe nacional da escravidão sem empinar o nariz virtuoso, como faz Harriet Beecher Stowe, e sim com a arma mais afiada e penetrante da ironia. Mais que tudo, Huck e Jim querem sobreviver: viajam à noite, escondem-se nas margens de dia, enfrentam tempestades e colisões com barcos a vapor, tudo para levar Jim à liberdade. Ao contrário de Tom Sawyer, aqui a civilização não é simplesmente uma questão de ter o pescoço lavado e esfregado por uma tia solteira e empertigada. Civilização aqui significa comprar e vender pessoas, para então fazê-las trabalhar até a morte; a civilização é uma terrível série de trapaças executadas às custas da ignorância provinciana. Huck, esperto e engenhoso, mostra ser um mestre dos truques e lorotas, ao estilo de Sawyer, quando confronta os adultos traiçoeiros que habitam as cidades ao longo do rio. Acontece então algo de terrível -para Huck e para a literatura americana. A narrativa passa do rio à terra firme, Jim é capturado e Twain traz Tom Sawyer de volta à cena. Ainda que o centro moral do livro seja Huck -na qualidade de protetor de Jim, é ele quem sofre a crise da consciência nacional-, cabe a Tom orquestrar a fuga final da fazenda dos Phelps. Huck, que até então nos emprestara seus olhos e sua voz, volta para o papel de companheiro de Tom, enquanto o livro descamba para a tolice, encenando sem muita plausibilidade o absurdo e rocambolesco plano de fuga de Sawyer. E, para tornar tudo completamente sem sentido, ficamos sabendo que Jim já fora legalmente libertado no testamento de Miss Watson -como Tom sabia o tempo todo. A maior história picaresca desde Cervantes e Diderot degenera numa sequência vacilante de números cômicos. Conforme o seu hábito de deixar que o livro se escrevesse por si só, Twain parou de trabalhar em Huckleberry Finn, para retomá-lo alguns anos depois, devolvê-lo à gaveta por alguns anos mais e finalmente terminá-lo e publicá-lo oito anos e muitos livros depois de tê-lo começado. Em algum momento do percurso, perdeu a determinação ou o rumo, confiando erroneamente que seus velhos truques de teatro -o garoto traquinas e suas pilhérias- viriam resgatá-lo. Mas eles parecem de mau gosto no mundo real de Huck e Jim e, com a vida deste último por um fio, cruelmente inadequados. Enquanto sulista reformado, Twain era um repositório de todas as contradições de sua sociedade. Os livros de Tom e Huck são visões contrastantes de um mesmo passado, e uma delas -a errada- acaba por prevalecer. O mesmo fator que fez Twain frustrar sua obra-prima gera seu mais problemático enigma moral -a figura de Jim. Twain adorava a fala dialetal, tinha ouvido para ela e recriava-a facilmente, de modo que, enquanto Huck Finn se bate contra a moral branca de seu tempo a fim de ajudar o negro a escapar da escravidão, seu progenitor literário adota a voz de comediante e apresenta Jim como um criançola crédulo, conduzido por um garoto branco. A ironia nem sempre é redentora. Texto Anterior: TWAIN SEM CENSURA Próximo Texto: JIM E O MORTO Índice |
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