São Paulo, domingo, 17 de setembro de 1995
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Da circunstância de ser banal

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Um poeta francês explicou porque jamais faria um romance -"Eu seria incapaz de escrever esta frase: a marquesa saiu às quatro horas".
Se em prosa é ingrato escrever uma banalidade, na música é bem mais amargo. Daí o pessoal que torce o nariz e tampa o ouvido para a ópera, que sendo teatro em música, obriga os autores a vexames piores.
Bem verdade que alguns monstros sagrados não tiveram o escrúpulo do poeta francês. Beethoven e Mozart -para citar dois gigantes- fizeram óperas. Beethoven ficou em "Fidelio" -e se deu por satisfeito. Mozart deve parte de sua popularidade às obras-primas que deixou: "Dom Giovanni", "A Flauta Mágica", as "Bodas de Fígaro", para citar as mais conhecidas. Tanto Beethoven como Mozart musicaram frases bem mais banais do que a marquesa que saiu às quatro horas.
Duro mesmo foi o caso de Verdi e Puccini. Posteriores a Beethoven e Mozart, já encontraram o gênero lírico adaptado ao gosto teatral do século seguinte. Em "La Traviata", Verdi botou música (muito bem encaixada, por sinal) na palavra "marchese", jogada num diálogo fútil, pouco antes da cena do brinde do primeiro ato. Alfredo é apresentado aos convidados e não tem outra saída para saudar um deles, do qual só sabia o título.
É o momento em que o tenor vai cantar a ária do brinde. Antes de elevar sua taça, é obrigado a gritar com acompanhamento de orquestra: "Marchese!"
No segundo ato de "La Bohéme", Puccini enfrenta coisa pior. Os boêmios sentam-se no Café Momus, o clima alegre do quartier dá ao autor a oportunidade de criar algumas das frases melódicas mais bonitas do repertório. Mas de repente vem o grito: "Salame!"
Por essas e outras, Gustav Mahler, que detestava em Puccini a popularidade, a fortuna e a sorte com o mulherio, retirou-se do seu camarote de diretor da Ópera de Viena quando ali foi apresentada pela primeira vez a obra do rival italiano. Dizem que, como bom austríaco, murmurou entre os dentes: "Se ainda fosse salsicha..."

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