São Paulo, domingo, 24 de setembro de 1995
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Serra, Malan e Clóvis disputam joguinho de poder

CARLOS ALBERTO SARDENBERG
DA REPORTAGEM LOCAL

A cena se passa em reunião de ministros, no Palácio do Planalto. José Serra, do Planejamento, comenta: "Então, a divulgação da reforma tributária ficou para amanhã".
Ao lado, Pedro Malan, da Fazenda, responde: "Não estou sabendo". Na verdade, já sabia. Mas como não havia sido consultado, manifestou estranheza para forçar a reabertura do assunto.
Serra, então, observou: "Eu também só fiquei sabendo agora".
Na verdade, ele próprio sugerira a data à assessoria do presidente. Mas não queria passar recibo.
Os dois olham então para Clóvis Carvalho, do Gabinete Civil, que também, obviamente, não sabia de nada.
E assim, volta-se a discutir a data da divulgação da reforma tributária. Que acaba ficando para o mesmo dia, mas agora com a concordância de todos.
A Folha obteve versões diferentes dessa cena, ocorrida há três semanas. Há variações aqui e ali, mas o sentido não muda. Ocorria ali um joguinho de poder.
Trivial, é claro. Não estava em jogo o conteúdo da reforma, muito menos o cargo deste ou daquele ministro. Na verdade, o joguinho "quem marca a data" era a superfície de uma realidade mais complexa.
Por baixo disso tudo, ocorrem divergências nada triviais a respeito da política econômica do governo de Fernando Henrique Cardoso.
Não há mais uma equipe econômica com pensamento comum, mas dois pólos de poder com orientação distinta.
Um pólo é o Ministério da Fazenda e o Banco Central. Manda no câmbio (a cotação do dólar), na taxa de juros e na quantidade de moeda em circulação.
E assim manda no sistema bancário, nos empréstimos, no crédito ao consumidor, no aquecimento ou desaquecimento da economia. É muito poder.
O outro pólo é a Secretaria do Planejamento da Presidência da República, a Seplan, chefiada por José Serra. Manda em duas coisas essenciais: faz o Orçamento do governo federal e controla o programa de privatizações.
Os dois lados, neste momento, comemoram juntos a inflação baixa. Mas divergem sobre como prosseguir com o programa de estabilização.
Essa divergência essencial é o pano de fundo das disputas setoriais. Para a Fazenda/BC, Serra, ao contrário do que indicam as aparências, tem sido frouxo no controle das contas públicas.
Ouve-se na Fazenda que a Seplan praticamente recriou os Ministérios do Bem-Estar Social e da Integração Regional, extintos porque eram instrumentos de distribuição de verbas por critério exclusivamente político.
Nada irritou mais o pessoal da Fazenda do que as visitas que Serra fez aos Estados distribuindo dinheiro do FGTS, sobre o qual tem inteiro controle.
E a Fazenda reclama ainda que Serra joga para lá todo o serviço sujo de cortar gastos. Por exemplo, o Orçamento de 1996, preparado pela Seplan, caiu como uma bomba na Secretaria do Tesouro, que é o caixa do Ministério da Fazenda.
O Orçamento cresceu 48% em relação ao de 1995, que já é uma peça de ficção.
Assim, o Orçamento real deste ano é pelo menos 40% inferior ao Orçamento oficial, uma ficção. E o Orçamento preparado por Serra para o ano que vem cresce 48% em relação à ficção de 1995.
Ou seja, a pressão sobre a Fazenda, em 1996, será muito maior do que a atual. A queixa é óbvia: a Seplan libera mais dinheiro do que a Fazenda tem para pagar.
Durante as últimas semanas, a Folha ouviu ministros elogiando a sensibilidade de Serra e atacando a falta de visão de Malan, especialmente na área social.
As contas do governo federal, divulgadas pelo Tesouro nesta semana, foram outro ponto de discórdia. Aumentaram os gastos das estatais, sob controle de Serra.
E a Fazenda diz que fez sua parte, contendo os gastos do governo federal. Finalmente, nesta semana, representantes da Fazenda e do BC fizeram verdadeira campanha pelo avanço das privatizações.
A teoria é a seguinte: a política de juros altos, arrocho no crédito e no consumo derruba a inflação e a mantém baixa. Mas não garante a retomada do crescimento, pois não resolve o desequilíbrio estrutural das contas públicas.
A privatização resolve. O dinheiro que entra serve para abater as dívidas históricas do governo.
Eliminadas essas dívidas, do ponto de vista da Fazenda/BC, será então possível praticar uma política monetária menos austera. Hoje, reduzir juros substancialmente e elevar o dólar só provocaria mais inflação, e não retomada sustentada do crescimento.
Já no pólo Seplan, a política de juros e câmbio é recessiva, destrói a economia e aumenta a própria dívida do governo. Isso porque quanto mais altos os juros, maiores as despesas do governo, um grande devedor.
Quando o pessoal da Fazenda cobra privatizações, o pessoal da Seplan diz que o BC gasta uma Vale do Rio Doce em poucos meses de juros altos.
Obviamente, cada pólo de poder estimula pressões sobre o ministro do outro lado. E assim sucedem-se ondas contra um e outro.
No início do governo FHC, os meios políticos davam como certo que, em poucos meses, Serra engoliria Malan. Mas o ministro da Fazenda, estimulado diretamente pelo presidente FHC, saiu a campo e efetivamente ocupou seu espaço na política econômica.
Como a Folha ouviu de assessores de FHC e ministros: Malan assumiu e está gostando muito de exercer o poder.
Parece que o objetivo de FHC foi exatamente o de ter os dois pólos, de modo a impedir um poder muito forte na área econômica. Assim, ele deixa correr as divergências e, quando elas não se resolvem, desempata.
Na semana passada, quando cresceu a pressão contra Malan, membros do primeiro escalão da Fazenda e do BC não manifestaram insegurança. Em conversas informais, explicaram que FHC, sempre que precisou intervir, desempatou a favor da política que mantém a inflação baixa, seu principal eleitor.
"E é aqui que se segura a inflação", se ouve na Fazenda e no BC.

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