São Paulo, domingo, 24 de setembro de 1995
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Porção Mulher

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Enquanto o país discute animadamente qual o melhor apelido para o pênis, um grupo de mulheres no Congresso espera impedir que os Bráulios continuem dominando as ações parlamentares no país.
Lideradas pela deputada Marta Suplicy, elas pretendem, como se sabe, garantir a porção mulher da política nacional, estabelecendo cotas para seres humanos do sexo feminino nas listas partidárias.
O projeto parte do pressuposto de que é preciso assegurar previamente o acesso à representação política que uma rede de dispositivos sócio-culturais vem bloqueando ao longo da história.
Pretende, portanto, corrigir uma distorção de representatividade, uma espécie de refração causada pela superfície dos preconceitos.
Aparentemente, muito justo. Porém, mais do que uma simples reivindicação feminina, a proposta traz em si uma concepção abrangente de como deveria se dar a representação política e a promoção dos grupos dela excluídos.
Afinal, embora sejam óbvios os obstáculos enfrentados pelas mulheres, elas não detêm o monopólio da discriminação - não seriam, assim, as únicas a merecer cotas. No limite, todos aqueles que sofrem preconceitos sociais, culturais ou políticos deveriam, pela lógica da proposta, ter sua parcela de representatividade garantida.
Os candidatos são muitos: negros, homossexuais, desempregados, favelados - para não mencionar a mais clamorosa cisão, abissal no Brasil, entre a minoria rica e a massa de miseráveis.
Chegaríamos, assim, à idéia de que a representação política deveria espelhar simetricamente a topografia da sociedade, como se o Parlamento pudesse ser uma espécie de amostra indeformada das divisões sociais.
Parece padecer, ainda, o projeto de uma certa ilusão legalista: acreditar que os avanços nas relações entre homens e mulheres e o rearranjo de suas posições relativas na sociedade dependem primordialmente de soluções legislativas.
Ilusão, porque se é verdade que as leis têm um papel importante a cumprir na fixação dos direitos femininos, elas, por si, jamais serão sua garantia.
Basta ver que o Estado e a sociedade ignoram despudoradamente artigos da Constituição, como o direito a salário mínimo decente, educação, saúde etc.
A proposta da deputada enfatiza justamente a representação política institucional e nada menciona a respeito de cotas para outras esferas, como ocorre nos EUA - o que daria ainda mais pano para saia.
Por fim, parece subjacente ao projeto a idéia de que os interesses de um determinado grupo encontram representação instantânea em seus integrantes formais - quando se sabe que as mediações e conflitos são mais complexos.
Mulheres, para ficar no caso, têm problemas em comum, mas também enormes divergências. Não são todas a favor da legalização do aborto, algumas são milionárias, outras paupérrimas.
Ou seja, nada garante que as cotas acabem sendo preenchidas por senhoras oligárquicas e conservadoras. Estaria assim, a progressista deputada, assegurando uma dose extra de Denilmas Bulhões ao nosso másculo meio político.

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