São Paulo, domingo, 24 de setembro de 1995
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Filme e hipnose

O crítico Raymond Bellour faz palestras no Brasil

BERNARDO CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A hipnose é a origem histórica tanto da psicanálise como do cinema. A partir dessa hipótese, o crítico francês Raymond Bellour, 56, desenvolve a tese de que o cinema produz emoções específicas, diferentes das outras artes.
Bellour, ex-crítico dos "Cahiers du Cinéma", editor da revista "Traffic" e autor, entre outros, de "L'Analyse du Film", está no Brasil para um curso e uma série de conferências, a convite do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade e do Núcleo de Linguagens Visuais (do curso de pós-graduação de Comunicação e Semiótica da PUC) e do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da USP. "O Corpo do Cinema" é o tema da palestra que faz na terça, às 20h30, no auditório 239 da Pontifícia Universidade Católica (r. Monte Alegre, 984).

Folha - O que quer dizer o "corpo do cinema"?
Raymond Bellour - Sob esse título, "O Corpo do Cinema", reúno dois assuntos sobre os quais trabalho há anos. O primeiro são as relações entre a hipnose e o cinema, que foram frequentemente evocadas e descritas de uma forma bastante geral, mas sem que fossem abordadas de uma maneira mais sistemática, tanto historicamente como num plano metapsicológico. O segundo, são as emoções no cinema. É um tema que entrou um pouco em moda recentemente na França. Cada vez mais as pessoas se perguntam se existem tipos de emoção específicos produzidos pelo cinema e quais seriam.
Folha - O sr. acredita que existam emoções específicas do cinema, que não se encontrem na literatura, por exemplo, ou nas outras artes?
Bellour - Acredito. Existem representações particulares da emoção, já que o cinema se dirige mais diretamente ao corpo que qualquer outra arte. Quero mostrar a relação entre esses dois níveis, que talvez sejam apenas um, de um lado o corpo do cinema como hipnose e de outro o corpo do cinema como regime específico de produção de emoções. O cinema é a única arte que se apresenta como um mimetismo da realidade, ainda que interpretado, construído, codificado, transformado. Existe uma participação mais direta do corpo do espectador.
Folha - Por que no teatro essa relação seria menos direta?
Bellour - A força da situação do cinema vem do fato de o espectador estar isolado no escuro da sala, que exista, portanto, um sistema de credulidade bastante particular, que se traduz numa identificação muito mais direta, tanto no que diz respeito às ações que se dão na tela como à câmera, à posição da objetiva, que funciona como um efeito de espelho sobre o espectador. Há algo menos direto que na comunicação teatral, mas também algo mais insidioso e mais violento. Se alguém como Brecht não gostava do cinema, era justamente por causa dessa máquina de ilusão e identificação.
Folha - A idéia, no caso, é que as emoções não são universais, que existem emoções diferentes em diferentes sociedades?
Bellour - Exatamente. Há uma relatividade e uma historicidade das emoções. Cada sociedade faz uma categorização própria das emoções que são produzidas dentro do seu próprio corpo social. Ao mesmo tempo, há uma história das emoções. No século 17 a regulação das emoções e das paixões não era a mesma que no século 19 ou na época contemporânea. Tanto na França como nos Estados Unidos, vê-se cada vez mais uma literatura importante sobre uma espécie de antropologia das emoções e que já há alguns anos atingiu a reflexão teórica sobre o cinema.
Folha - Por que a hipnose lhe interessa tanto?
Bellour - No início, era uma questão que me interessava muito mais na literatura que no cinema. Trabalhei sobre uma série de romances de Alexandre Dumas sobre a Revolução Francesa ("Joseph Balsamo", "Le Collier de la Reine" etc.), onde a hipnose aparece através do personagem de Joseph Balsamo, diretamente inspirado pela figura de Mesmer, que é o inventor da hipnose sob o nome de "magnetismo animal", ocupando um lugar central.
Poderíamos chegar mesmo a dizer que nesses romances é graças à hipnose que a Revolução Francesa se concretiza. Esses livros me serviram de modelo de construção da subjetividade romântica, dentro de um sistema que se tornará aquela da psicanálise clássica. Ao longo do século 19, você vê um interesse muito violento pela hipnose, considerada algo extremamente enigmático. E que vai acabar desaparecendo no próprio interior da psicanálise, que surge ao mesmo tempo que o cinema.
Folha - O sr. quer dizer que houve um deslocamento da hipnose para o cinema, através da psicanálise?
Bellour - Podemos descrever dois circuitos lógicos: a hipnose, ao longo do século 19, vai engendrar a psicanálise, que irá se separar dela para criar sua própria modalidade, transformando-a em termo maldito e subterrâneo, mantido à distância; ao mesmo tempo, você tem os desenvolvimentos da tecnologia, da fotografia, da fantasmagoria, que vão desembocar no cinema. Mas acho interessante traçar uma linha onde a psicanálise e o cinema nascem ambos da hipnose, e que o cinema vai herdar da hipnose uma teatralidade e uma violência dos processos corporais.
Hoje, nos Estados Unidos e na França, há também uma retomada do interesse pela hipnose dentro da própria cena psicanalítica, como possibilidade de tratamento. Na França, há dois nomes importantes, Léon Chertok, que desde 1972 desenvolveu todo um trabalho histórico, clínico e prático sobre a hipnose como fenômeno de transição, interdisciplinar, e François Roustang, que desenvolveu uma prática da hipnose para uma psicanálise de outro gênero.

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