São Paulo, domingo, 24 de setembro de 1995
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Assobio para chamar vento

MARILENE FELINTO

Turista vulgariza tudo, até mesmo a tragédia. A história das centenas de brasileiros pegos de surpresa pelo furacão Luis na ilha de Saint Martin, no sete de setembro, desperta menos piedade do que vontade de rir. Trata-se do turista típico, que viaja em excursão, que vai a Miami ou ao Caribe porque está na moda. Turista ingênuo, aspirante a novo rico, ou o próprio. Não haveria encontro mais esdrúxulo: ele e um furacão.
Minha imagem de furacão ainda é de livro, da descrição romântica de Hermann Hesse, no romance "Peter Camenzind", que li há vinte anos, na adolescência. É a imagem de força e erotismo do "foehn, o vento sul, do tremer do solo, da luta das tormentas contra as montanhas alpinas. O jovem Camenzind, que temia o "foehn" na infância, ama-o na adolescência, reconhecendo nele seus instintos de selvageria.
Para ele, o furacão é o rebelde, o jovem que "se atirava à luta, selvagem, impetuoso, rindo e gemendo (...) e uivando através das gargantas, devorando a neve das montanhas, curvando com suas mãos ásperas os velhos pinheiros resistentes, arrancando-lhes suspiros profundos'.
O que houve na ilha caribenha de Saint Martin foi o choque entre a humanidade disciplinada no casal, na família, e a natureza em estado bruto. Foi o encontro patético entre o artificial e o natural. O turista -sua bagagenzinha, seu tênis, seu agasalho de jogging, sua máquina fotográfica, sua filmadora, seu repertório de "benhê", "amor", "filhinho", "filhinha", seu amorzinho de lua-de-mel- deu de cara contra o bramir furioso, o murmúrio quente e profundo, o ranger de dentes, as chicotadas impiedosas do tufão.
O turista que foi ao Caribe é a personificação da face risível dessa civilização. Não é pior que qualquer outro, esteve apenas mais exposto ao ridículo. Constrangedoras são também as férias do suposto intelectual que viaja para Paris ou Nova York com sua esposa "promoter", terapeuta-musical, poeta-gráfica ou designer (qualquer uma dessas profissões modernosas). O casal pós-moderno é pior do que o par de noivinhos dentistas do Caribe, que voltam cansados e calados.
De boca grande, a gente pós-moderna volta da Europa desfiando seu rosário de opiniões vazias, de impressões rasas de falsos poetas. Fazem de tudo para aparecer na TV, na MTV, na inauguração disso, na estréia daquilo. Mas a pós-modernidade não muda a estrutura dos aglomerados humanos, não salva ninguém da vergonha de ser humano. Antes agrava a humilhação.
O casal de gays que veraneia em San Francisco, as lésbicas que viajam à Índia, o casal hetero comum, casal-cabeça, que vai ao Senegal ou à Grécia, a família que vai a Israel, ao Japão ou a Portugal, todos são patéticos. Trata-se da mesma intimidadezinha supervalorizada, embaladinha em malas e maletas, alimentada por benhês e amorzinhos, esquecida da natureza de que são feitas as coisas da vida. No Caribe, a intimidadezinha foi surpreendida pela natureza, devassada pela gargalhada do furacão, destroçada na sua artificialidade de lingerie.
A natureza só não ridiculariza o bicho e a miséria. Somente a fome não é postiça. Ruge verdadeira como o furacão. O favelado e o bicho acasalam-se, dispostos a fazer ou morrer para caçar o alimento do dia. A vida é antes isso. Bons ventos o levem, turista. Boa viagem.

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