São Paulo, terça-feira, 2 de janeiro de 1996
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Por que me ufano - 1

LUÍS NASSIF

No final do governo Sarney, o amor-próprio nacional havia batido no fundo do poço. Mundialmente disseminava-se a imagem do país desonesto, caloteiro, onde não havia negócios públicos sem o pagamento de propinas, nem negócios privados que pudessem se fundar exclusivamente na palavra.
Na época, não houve brasileiro sério que não se tenha indagado porque o país havia falhado tão rotundamente.
Comecei a rever minha posição sobre o país a partir de algumas reflexões em torno de estudos de competitividade entre nações.
Os modernos especialistas em política industrial reconhecem que, na vida das nações, há valores que se conquistam e valores que são intrínsecos a determinadas culturas. Disciplina, capacidade gerencial, modernização nas relações trabalhistas e de negócios são valores que, não se tendo, se aprendem. Mas há um valor estratégico fundamental que ou se tem ou não se tem: a criatividade.
Nas viagens ao exterior, a visita a qualquer grande loja de departamentos americana trazia desânimo. Para cada marca de eletrodomésticos no Brasil, havia pelo menos 20 nos EUA. Em qualquer outro item industrial ou de serviços não havia termos de comparação. Era muita diferença para imaginar que um dia o Brasil estaria apto a competir com os grandes.
Força musical
Mas, em qualquer grande loja de discos, o amor-próprio nacional se restaurava. Entendendo-se os gêneros musicais como famílias de produtos, em quase todas as linhas o Brasil tinha uma posição de liderança. Dispunha da melhor escola de violão do mundo, da melhor música popular sofisticada (a bossa nova e seus filhos), da maior constelação de pop stars (Milton, Djavan, Ivan, Gismonti, Caetano, Gil, João Bosco etc.), do maior nome da música popular universal (Tom), da melhor escola instrumental (o choro), dos ritmos que estavam renovando a música pop (os baianos). Fora a variedade de ritmos regionais, ainda desconhecida no exterior.
Em um dos itens fundamentais na competitividade entre nações - a criatividade- o Brasil dispunha de vantagens comparativas expressivas. Era o único país capaz de ombrear com os EUA e até superá-los.
Mas por que essa criatividade se manifestou especificamente na música popular e no futebol (dentro de campo)?
A resposta não era difícil. Porque não havia Estado, não havia mediação política. O compositor popular saía do fundo do barro. Para virar gente, necessitava do talento. Se não dispusesse de talento, não haveria Banco do Brasil, Caixa Econômica, BNDES, político amigo que desse jeito. Ele poderia até conseguir alguma sinecura em outra área. Mas compositor popular ele não virava.
Não foi por outro motivo que a música popular se fez na clandestinidade. Até as primeiras décadas do século, sambistas e chorões eram perseguidos pela polícia. O poder político no Brasil nunca admitiu nenhuma forma de manifestação autônoma, que não se submetesse à sua mediação.
A música popular só passou a ser aceita e defendida da polícia quando o sistema de poder conseguiu a cooptação dos músicos de salões -os Catulos e Nazareths. Mas o morro só seria aceito nos anos 50 e, assim mesmo, pasteurizado como macumba para turista.
A partir da análise do que ocorreu com a música popular, ficou mais fácil entender o país e encontrar a resposta para a seguinte questão. Duas grandes nações foram forjadas nas Américas: os EUA e o Brasil. Uma realizou plenamente seu potencial. A outra vem adiando sucessivamente sua realização desde o século passado.
Ainda no início do século, quando o presidente eleito Campos Salles foi à Europa para renegociar a dívida brasileira, os jornais londrinos foram unânimes em reconhecer: é um grande país, com vocação de grandeza. Só há uma coisa que impede sua realização: o modelo político espúrio.
Como foi possível a esse modelo se legitimar e, durante tantos séculos, manter a nação subordinada a essa lógica de atraso? Na resposta a essa indagação está a chave para a superação do velho modelo.

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