São Paulo, domingo, 7 de janeiro de 1996
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Tecnologia não resolve problemas do século 20

GILSON SCHWARTZ
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Na semana passada, a Bolsa de Nova York deu mais algumas derrapadas, em meio a um clima que ainda é de euforia pelos ganhos do ano passado. As ações tecnológicas destacam-se entre as estrelas cadentes. Mas algumas vozes dissonantes já se fazem ouvir, há quem aposte na proximidade de uma nova recessão nos EUA e problemas tecnológicos e econômicos de toda ordem ficam cada vez mais claros exatamente nos setores intensivos em tecnologia.
Mal sinal para um mercado que vinha ficando cada vez mais obcecado com as novas tecnologias. Faltando cerca de 5% de século para o próximo milênio, a época pode afinal revelar-se mais frustrante do que se esperava, ao menos em termos de economia.
Continuamos vivendo numa era de extinção da metáfora econômica. O público em geral percebe o fenômeno como "falência dos modelos econômicos", certas áreas enxergam nisso o fim da bipolaridade ideológica. O fato, nu e cru, é que o século termina sem resolver nem uma sequer das grandes questões (e esperanças) com que começou. E a obsessão neotecnológica talvez seja exatamente uma espécie de compensação para esse momento de vazio.
Os dois signos mais potentes do processo em andamento são a negação do trabalho e, praticamente como um espelho, a privatização das relações humanas (que alguns denominam "morte da política", depois da "morte de Deus").
Agora, imagine o seguinte modelo: a caotização dos mercados de trabalho, com geração de novos contingentes de excluídos (até o "exército industrial de reserva" ficou descartável), cria limites à expansão do poder aquisitivo.
Fim do trabalho
A "flexibilização" dos mercados de trabalho abre espaço para novas formas de contratação da mão-de-obra, onde o objeto do contrato já não é um certo "tempo de trabalho", e sim uma certa quantidade de informação. É rompida a sociabilidade que se alimentava do "vínculo empregatício".
Curiosamente, é nos Estados Unidos que o debate sobre as funções sociais do Estado atingiu um ponto de inflexão, que se manifesta no maior confronto entre um presidente e o Congresso da história republicana.
Num mercado estruturado pela informação, e não pela divisão do trabalho (como observava Adam Smith), e onde o Estado se retira do espaço público, a tecnologia (fator extra-econômico) surge novamente como a grande esperança de substituir Deus e a política por algo inteligente.
Fala-se cada vez mais, por exemplo, em "learning organizations" (as empresas incorporariam informação e conhecimento como condição para agregarem valor aos produtos). As metáforas mais frequentes invocam sempre uma nova capacidade de racionalização da vida, como na imagem de uma "knowledge society" (sociedade do conhecimento).
Diante dessa onda, vale a pena dar uma olhadinha no que a reflexão sobre o conhecimento humano tem a ensinar. O resultado é paradoxal: boa parte do que interessa na filosofia do conhecimento contemporâneo sustenta que o conhecimento humano, como a linguagem, só faz sentido no interior de uma comunidade estruturada por cultura, vida, instituições ou regras compartilhadas.
Paradoxo
O paradoxo é que, no final do século, há uma tendência avassaladora rumo à substituição do trabalho e da política pela racionalidade tecnológica, quando tudo o que se pensou de relevante nos últimos 100 anos sobre o assunto mostra que vale o contrário. Ou seja, a razão só faz sentido "ancorada" numa sociedade capaz de refletir sobre si mesma e, assim, desenvolver instituições confiáveis.
As instituições existentes, entretanto, são ou corruptas ou impotentes ou têm como prioridade na sua agenda desmontarem a si mesmas.
Sem metáfora econômica convincente, sem política confiável e, no máximo, contando com as virtudes imaginárias da tecnologia (no lugar da "virtu", o "virtual"), não espanta que venham crescendo tanto os negócios na área de franchising religioso.
Quem se incomodar que reclame ao bispo (se estiver em dia com o carnê da felicidade). Ou abra sua própria franquia.

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